Vai passar, há de passar, Oxum me contou


Eles vêm aqui todo domingo. Dizem que é a cerveja mais gelada da cidade e né por nada não, mas eu também acho e queria dizer pra todos eles que continua sendo. O samba começa e todo mundo finge que é igual. Todo mundo esquece que é diferente. E fica lá, sambando, pagode ou de raiz, num importa. O pandeiro canta, ihh, a noite toda. E continua cantando, queria dizer, se pudesse. Uns descem de carro. Outros, a pé. Tem dias que não fica tão cheio, porque o terreiro tá em festa. E sobem todos eles do mesmo jeito. Sem medo. Ou fingindo que não têm medo. Eu sei lá. Mas agora tá diferente. Não vou te dizer que essas coisas acontecem, filha, porque nunca vi desse jeito não. Podia tá como fosse que o povo vinha aqui. Mas, agora... É que eu mesma tô com medo, sabe, filha? Vê se pode, eu? Sempre abri o bar sozinha, ficava até madrugada com esses home bêbado aqui do bairro. Mas é que sempre foi tudo no respeito. Não sei, mas agora parece que tá diferente. Ontem mesmo tentaram invadir o mercadinho da Silvia. Poxa, logo a Silvia, todo mundo conhece ela. Não era pra ser assim. Se eles soubessem que por aqui sempre foi difícil, acho que nem vinham... Acho que não vinham, não. Agora que sabem como que é, aí que não vêm mesmo. Pior que tô com medo junto com eles. Mas lá ainda dá pra andar, né... Aqui tá pior. Aqui corre o risco da bala perdida te pegar ou sei la cê pode ser confundido com bandido que nem o neto da dona Penha, o Julio. Coitado... Era um menino bom, fazia mal a ninguém. É só tristeza e medo, agora, filha. Mas vai passar, há de passar. Oxum me contou que vai passar, então, tem que passar. Né?

[Em memória de Júlio dos Reis, 17 anos, Julinho, como lhe chamou a avó dona Penha. Um jovem com deficiência que foi confundido com um ladrão e linchado na rua, no bairro Flexal I, na última quinta-feira, dia 9]