Bando


Ato 1

Eu tinha 10 anos. A maioria das pessoas da minha rua eram flamenguistas. Eu entre elas. Final do campeonato carioca e nós tínhamos programado uma festa toda decorada com bandeiras do time. Mas estava no segundo tempo e pelo jeito o flamengo não ia ganhar. Eram mais de quinze crianças sentadas intercalando entre-olhadas e olhares aflitos para a enorme tv de tubo. Meu coração quase saltava pela boca. Eu, sempre tentando amenizar, queria dizer que a gente podia fazer a festa mesmo assim e comer o bolo e tudo ia ficar bem. Mas a frase ficava entalada da minha garganta e com certeza o bolo também ficaria. Mas Petkovic fez um gol aos 43 do segundo tempo e o grito de todo mundo saiu como foguetes pela sala, encheu a casa e durou a noite toda. Nos juntamos com mais outras pessoas e ficamos dando voltas pela rua cantando o hino do flamengo, nos abraçando e jogando bombinhas pelo chão.

Ato 2

Quando eu tinha oito anos eu sai na capa do jornal carregando um cartaz pedindo paz em uma marcha do dia da bandeira que a escola estava promovendo. Ninguém entendeu muito bem o que eu estava fazendo, por isso o repórter me entrevistou e chegou a conclusão que aquele era um apelo de uma criança por causa da violência no bairro. Eu não sei se foi isso mesmo, mas de lá pra cá eu venho tentado estar no meio de tudo que busque, de alguma forma, uma sociedade no mímino mais de boa. Minha primeira “grande marcha” foi uma sobre o aumento da passagem em 2009. Eu nem sabia bem quem estava organizando e como eu tinha ido parar ali. Mas eu sei que muita gente levou spray de pimenta e bomba de gás na cara. Depois de uma dessas sessões de tortura autorizada e respaldada pelo estado, a marcha dispersou. Mas as pessoas foram voltando aos poucos. Fazendo uma barreira que protegia os mais atingidos. Uma das pessoas começou a bater palmas em um ritmo quatro por quatro. Eram só palmas. Palmas ritmadas. Mas eram muitas palmas. E elas entraram em sincronia muito rápido. Todos muito juntos. Cem pessoas pareciam um milhão. Meus olhos marejaram a minha pele arrepiou em instantes. As duas pessoas coladas em mim também tinham se arrepiado. Eu não precisei olhar nos olhos delas para saber que estavam todos iguais.

Ato 3

Festa de São Sebastião. Eu tenho um fraco com tambor porque eu acho que eles cedo ou tarde, batem junto com o nosso coração. Tinha tanto simbolismo ali, que meus olhos já não acompanhavam. Tinha gente rindo. Gente rodando, gente brindando, gente chorando. Tinha uma senhora que passou todo o percurso com olhos fechados e um terço na mão. Mas mesmo ela, em determinada hora, entrou no ritmo do congo que é ao mesmo tempo muito individual e muito coletivo. Porque não existe regra e nem forma apropriada de dançar. Você só segue o seu corpo e de repente você faz parte de um só corpo formado pela caravana. No meio disso tudo, um homem carregava uma criança nos ombros. A criança, que devia ter no máximo dois anos estava dormindo, porém sorrindo. Ao longo da caminhada, ela foi sendo passada para várias pessoas. Nem ela nem as pessoas - que carregavam o peso da criança nos ombros - tiraram o sorriso do rosto.

 Desfecho

 O ônibus lotado, as filas nos bancos, as esmagadoras aglomerações nas festas, os elevadores, as lojas na véspera de natal, a praia do sábado de verão e tantas outras situações cotidianas vão tentar te convencer de que cheio é ruim. Que multidão é chato. Que é melhor ficar em casa. Ir para o meio da floresta. Para cima de uma montanha. Mas não somos tigres. Não somos cobras. Não somos corujas. Nós nascemos para viver em bando. Mas não se engane. Esse bando não é sua família Não é seu bairro. Não é sua escola. Não é seu emprego. Bando é onde a nuca arrepia e não onde o coração aperta.