Juane Vaillant

“Apenas casual.” Eu pensei, enquanto andava pela rua. Meus óculos escuros cumpriam sua principal função: esconder os olhos de ressaca. Eu queria muito um copo d’água mas queria mais ainda chegar na minha casa e dormir.

Os pensamentos borbulhavam e eu por fora, fervia. Sim, tinha sido casual. Mas era um casual que já tinha acontecido algumas vezes. Eu tinha que admitir, que ao contrário da maioria das vezes, agora eu estava envolvida. Contra todas as expectativas.

Sentei no banco quente do ponto de ônibus e só sai do meu transe porque o celular “apitou”. Olhei. Era uma mensagem dele: “Ei moça. Adorei te ver. Fico tentando imaginar o que se passa nessa sua cabeça embaralhada. (carinha piscando) Será que se explica? kkkkk bj”

Pensei. Pensei. A ressaca estava me matando e eu provavelmente ainda estava um pouco bêbada. Escrevi tudo de uma vez. Não queria dar tempo para me arrepender.

“Foi muita coisa… Foi rajada, foi forte, foi vento, turbilhão. Bateu fundo, eu olhei  muito tempo, mergulhei muito fundo, na lagoa dos seus olhos, e não sai mais. Você chama de conexão, coisa que não se explica, coração. Eu chamo de angustia, desespero, desassossego, porque não sei  o que será, se vai parar. Vai cachoeira, rio, ladeira, desenfreia e não termina, não para. Não pensa, fecha os olhos, laça os dedos, e gira, olha o céu já está vermelho.  Não é real, é sensação, mas não quer dizer que não está acontecendo. Treme, bate o queixo, sua frio, abaixa cabeça, sorri de canto, que eu me encanto e não volto atrás. Peço perdão antecipadamente por ter medos, dúvidas e ser tão “razão”.  Por que, você ainda não sabe, não conhece nem percebe, o que já passou por aqui. Mas fica calmo, eu te mostro, eu te conto e entendendo, fica fácil,  fica mole, é só sinalizar que sabe e quer saber. Eu não diria isso, nem pensaria, se acaso não tivesse mudado, transformado, transportado, alguma coisa. Se eu ainda estivesse, no lugar comum, você seria, com certeza, mais um.... Um que não ia nem saber, pensar, perceber, que não tem culpa, por eu não querer, por me esquivar, esconder. E se acaso lhe parecer, que faço pouco caso, que desfaço promessas, eu não sou bem assim.  Aos poucos eu sossego, fico livre, solta, e me seguro em ti. É  claro, é seu direito, não reclamo se não quiser embarcar nessa estrada de pedras comigo. Mas eu te avisei, desde o principio, meu bem, eu não faço o menor sentido.”

Enviei. Me arrependi, sim, mas foi segundos depois. Estava lá e estava feito. A tecnologia as vezes tem dessas. Leva a gente para locais escusos. E eu, que nunca tinha dito nada, disse tudo.

Olhei a tela. Malditos tracinhos azuis. Visualizado, não respondido. Ri fraca, era compreensível. Nem todo mundo esta preparado para 1498 caracteres de poesia logo cedo. Ele precisava de um tempo.

já não sabia quanto tempo passara ali, a observar o vento levar as folhas de um lado ao outro. os pombos pousavam bicando, em vão, o chão sujo. pequenos insetos corriam desesperadamente pelas raízes gordas das árvores. estranhava que a natureza os tivesse feito todos iguais. embora soubesse que algumas formigas eram maior do que outras. o som dos sapatos batendo no asfalto era como o som de passos de um cavalo bem lerdo. às vezes, tinha sorte de ouvir o silêncio e, bem no meio dele, escutar o surdo zumbido que a brisa faz ao encontrar o ouvido. um pensamento feliz lhe veio à cabeça: lembrou-se de que domingo era seu dia de folga. alegrando a alma com as pequenezas da vida, esperou a noite chegar e, ali mesmo, dormiu.

Enquanto o vento sul balança as folhas do livro e de um abacateiro do lado de lá da grade, Aretha arruma, com sua voz, toda a bagunça da minha casa. A sensação de que tudo caminha numa direção sem volta desaparece.

While riding I think of us, dear. Querer esquecer o delineado molde do desejo é inútil. O desejo é a força motriz acalentadora da alma, ditadora dos passos. Não podemos fazer nada nem mudar destinos. I say a little prayer for (me) you.

Pensei em muita coisa sem tirar nada do lugar. De tudo, o que mais me roubou o tempo foi o dia em que seremos além de qualquer razão imposta. O dia em que decidiremos por nós, pelos nossos corpos, sem dúvida nem hesitação, porque, quando o corpo pede, por mais que se tente, não há como dizer não.

Chamas surgem em nossos corações o tempo todo. É cruel e bom.

Hoje quis saber se você está bem. E, mesmo com toda a facilidade tenológica, faltou-me a coragem de enviar uma carinha que finge ser feliz. Tenho praticado o exercício do silêncio para ver se escuto algo.

As pessoas tendem a não compreender o que está fora de um limite comum. Lástima. É importante não fazer parte da corrente de tolos. Toda corrente tem um elo fraco.

Preciso te lembrar que todo amor deve ser muito forte. Se não for assim, não é amor. O encantamento talvez seja a chave de uma libertação ao mesmo tempo em que pode aumentar a distância. É um risco que se corre, que vale a pena por si só. Não é bom perder o ritmo dos encantos na vida. Uma vez perdido, será difícil a sua retomada.

Estou tentando viver um personagem sem nome, que afirma ter rompido uma película entre ele e o outro. Fui convidada por ele para mergulhar no silêncio e, depois de muito esforço, percebi o quanto é difícil conter os gritos.

Marília Carreiro é escritora, editora na Pedregulho e diz que escreve "pseudo poemas". Vai editar e lançar nossos próximos livros e é a nossa convidada do mês.

Juane Vaillant

A cabeça pesada era uma constante. Talvez, fosse realmente alguma doença. Em igrejas, consultórios médicos e almoços de família, ela ouvia, desde muito nova, que havia algo errado com ela. Com o tempo, ela se convenceu de que, fosse o que fosse, eram impossível de mudar.

O grande problema é que ela não sabia exatamente o que era. A cabeça doía de tempos em tempos. A dor começava na região dos ouvidos e ia se espalhando pela parte de cima, trazendo a sensação de que todos os seus neurônios estavam se mexendo. As lágrimas também estavam sempre ali. Um formigamento que se alojava na parte da frente dos olhos e puxava aquele líquido constrangedor para frente. Envergonhando a menina e encabulando os de fora.

Resolveu que ia procurar um médico novamente. Agora por conta própria. Talvez, não um médico convencional. Um psicólogo, um curandeiro, quem sabe?

Andou pelas ruas a esmo. Queria um cartaz, um folheto, uma placa de neon, algo que indicasse uma direção. Se viu caminhado por horas, ultrapassou a estrada habitual. Chegou em uma estrada de chão. Esse letreiro de tinta chamou atenção. “Consertamos  disco voador.”  Entrou. Com medo do que podia ouvir.

Uma das lembranças mais sólidas da sua infância era um médico que disse que ela precisava de “surra”. Talvez, se ela se comportasse, fosse mais obediente, isso ia passar. Quando grande, sempre a aconselhavam parar de se preocupar. Parar de carregar a dor dos outros. Para de se importar. Apenas parar.

Embora ela não precisasse ouvir essas coisas. Já culpava a si mesma por tudo, sem precisar de avisos externos. Ela fez as escolhas. Ela disse “sim” quando deveria ser “não”. Mas principalmente ele disse “não” todas as vezes em que deveria ter dito “sim”.

Dentro da casa, que era mais conservada do que ela imaginou, avistou uma senhora, em uma cadeira de balanço velha, brincando com um cubo mágico. Seu semblante era sereno.

- Olá, a senhora é a dona aqui?
- Sim, minha filha. Sua voz era rouca, porém firme.
- E você realmente conserta discos voadores?
- Pois bem… - Ela falou, tirando os olhos do cubo pela primeira vez.  - Muitas vezes eu ouvi que não pertenço a este lugar. Que seja o que for que eu estiver fazendo, não está bom. Não está certo. Desde então eu estudo tudo que posso sobre discos voadores. Seus materiais, resistência, mecanismo… Então, se algum dia alguém aparecer aqui com um disco voador quebrado, eu terei alguma chance de ir para onde quer que seja.
- Desculpe, eu não tenho um disco voador.

- Ah, eu sei. - A senhora levantou, pegou dois copos e uma garrafa térmica e voltou a se sentar na cadeira de balanço. - Pode sentar minha filha. Vamos conversar. Qualquer pessoa que se interesse por discos voadores não está muito satisfeito com essa realidade pobre que mostram pra gente.

Entrou no ônibus sorridente, com a franja reta comprida o suficiente para quase lhe tampar os olhos. O brasileiro veio a sua frente e, depois dela, seu irmão. Sentou-se próxima à janela e insistia em conversar com o irmão em japonês. Pareciam estar contando piadas um para o outro. Ela sorria, fazendo questão de não sussurrar, como se quisesse gritar o orgulho que ainda restava por ser quem era.

Em inglês, o brasileiro tentava explicar o porquê de estar gripado. A menina achou que ele queria alguma coisa. Abriu a bolsa, mas logo entendeu o que ele dizia e falou para ele se cuidar, tomar bastante água. Disse em inglês. Também orgulhoso da língua que há pouco aprendera, o rapaz respondeu triunfante: "thanks".

Ela riu sozinha, logo depois. Encostou a cabeça na janela e pensou na ironia que a vida acabara de lhe mostrar. Havia deixado sua pátria em busca de compreensão, de espaço. Queria usar as roupas que quisesse, estudar o que achasse melhor. Cursar uma faculdade, ser independente.

Encontrou certa compreensão, sim. Mas, no exato momento em que ouviu o inglês do brasileiro, notou o apego que ainda tinha por seu idioma nativo. Veio ao Brasil em busca de um lugar que a compreendesse e, agora, tudo o que mais queria era alguém para compreender sua própria língua sem esforço. Sentia falta de pegar um ônibus e ouvir um burburinho em japonês. Ir ao mercado e se esforçar para perguntar o preço do refrigerante era, justamente, lembrar de que aquele não era o seu lugar, de que estava de passagem.

O lugar que, antes, para ela, era símbolo de incompreensão se tornou abrigo da compreensão que buscava. Pelo menos, de uma parte dela. "Talvez, a vida seja exatamente isso", pensou. "Uma eterna busca por compreensão, por compreender e por se fazer compreender". Fechou o olhos por alguns segundos e sentiu vontade de chorar.

De repente, levantou a cabeça assustada e pediu ao irmão para apertar o botão que sinalizava a parada do ônibus. Antes de sair, o irmão falou ao brasileiro "See you later", dando-lhe um aperto de mão. Já ela, com um sorriso quase tímido no rosto, despediu-se do brasileiro com um alto, sonoro e radiante "tchau".

Juane Vaillant

Sento na calçada e coloco meus pés na grama. A sensação de poder fazer isso logo de manhã é acolhedora. Na minha frente estão três crianças. Duas delas são tão pequenas que mal conseguem segurar os brinquedos que jogam de um lado para o outro. A terceira criança é um pouco maior. Ela parece achar graça da brincadeira dos outros dois. Mas não de uma forma debochada. Se diverte.

As duas crianças menores brincam de algo que consiste em jogar a bola de um lado para o outro. Quando um cai, o outro espera o amigo levantar e quando ele levanta os dois pulam e fazem "Eeee". Algum adulto deve ter ensinado, para que eles não chorem ao cair. Mas fica tão, tão mais genuíno quando as crianças fazem. Dizem, sem dizer nada. Dizem: Estou com você.

Em alguns momentos, alguma criança quer segurar a bola por mais tempo. O outro se zanga. Cruza os braços, sai de perto ou tenta tomar a bola. O conflito se arma por segundos. E também em segundo eles fazem as pazes. Jogando a bola para o alto, fazendo "Eeee" ou simplesmente dando a bola para o amigo que está triste. E por segundos, também segundos, eu acho a vida tão simples. Eu acho meus problemas tão simples de resolver. A bola não é minha afinal. Na vida dos adultos, ninguém é realmente o dono da bola.

Volto a realidade. A terceira criança, a mais velha, pega umas pipas. Quer fazer uma rabiola. Os pequenos não sabem fazer isso. Não fazem nem ideia do que seja. Eles usam a pipa como um avião de papel. Aprendem o significado de ressignificar. E me jogam esse conceito na cara também. Bem quando eu achava que não ia mais pensar nada.

Penso. Penso novamente. Você já viu como as pessoas olham para os bebês? Na rua, no ônibus, nas lojas? Elas estão interessadas. Elas estão animadas. É como se, só assim, olhando para uma pessoinha tão pequena, é que se deem conta do milagre da vida. Da essência das pessoas.

As três crianças continuam brincando. Pegando formigas na mão e as admirando. Como pode uma coisa tão pequena como essa ter vida? “Será que ela pensa?” Pergunta a criança mais velha para mim”. Eu não faço que sim nem que não. “O que você acha?” Pergunto depois de um tempo. “Acho que tudo pensa.” Ele responde, passando a formiga de uma mão para a outra.

Volto para o meu devaneio. A criança para o dela. E a formiga, provavelmente também.

Abriu o maço de cigarros e dois a esperavam. Pendurou um deles em seus lábios, com certa tristeza de vê-los acabando, com certa alegria por poder acendê-los. Era seu rito. Depois de beber muito, fumava um cigarro, sentada no banco azul da praça em frente a sua casa, enquanto esperava a feira e via o sol se amanhecer. Acreditava muito fortemente que aquilo lhe afastava a ressaca. Tinha funcionado até então.

Adorava ver as barracas sendo montadas, o dia se abrindo como uma flor, ouvir o burburinho começando, os abraços trocados. Mas adorava, principalmente, contemplar o sorriso no rosto de quem a mão se calejava dia após dia como fruto de seu trabalho.

Aquele sorriso não era um simples símbolo da alegria, pensava sozinha. Era isso, também. Mas mais do que a expressão da alegria, aquele sorriso era a expressão da esperança, da gratidão, do amor. E tudo isso preenchia Ana de uma forma que, sabia, nenhum copo de cerveja e nenhum trago de cigarro seria capaz de fazer.

Lembrou de Jó. A história do homem que perdeu tudo o que lhe era mais precioso, filhos, terras, saúde e quase sua sanidade, mas - ainda assim - agradecia ao seu deus. Ana não acreditava em deus, mas guardava essa história - que a mãe contara inúmeras vezes - a sete chaves. A gratidão em meio a dor, por mais forte que ela seja. É sobre saber que há algo em nós maior do que as dores que, achamos, nos cegam. Há uma força.

E essa força Ana podia observar naquele exato momento. Nos sorrisos dos feirantes, nos abraços fraternos e aparentemente sinceros que trocavam. No "bom dia" que vinha daqui, de lá. Sem perceber, o cigarro já estava no fim e sentia-se bem por estar exatamente ali onde estava. Estava além de suas próprias preocupações.

- Bom dia, Ana. Bebeu muito hoje?

- Bom dia, Carlinhos. Só um pouco!

Era o mendigo da esquina. Sempre passava por ali, sorrindo. Às vezes, cantava qualquer música, enquanto procurava alguma comida nas sobras da feira. Nesse dia, ele olhou Ana bem dentro de seus olhos, sentou-se ao seu lado e disse:

- É isso, minha filha. Vamos viver. Porque, dizia o poeta, o tempo não para.

E saiu a cantarolar os versos de Cazuza, como se não houvesse nenhum problema, como se a vida fosse boa para ele. E talvez fosse, afinal. Ana sorriu. Saudou Cazuza, saudou Jó, saudou sua falecida mãe e foi para casa dormir.

Juane Vaillant

Para alguém que espera algo tão extraordinário da vida, uma grande virada, uma descoberta, uma viagem inesperada… Quase tudo poderia parecer entediante em algum momento. Mas definitivamente quartas-feiras eram entediantes. Catharina estava no ponto de ônibus e o seu passou, como se ela não estivesse ali com o braço para o ar desde que ele virou a esquina. Droga! Perder o ônibus era que transformava um dia normal e pacato em um dia realmente chato.

- Seria muito bom ter teletransporte, né?
Disse um homem ao seu lado. Ele devia ter uns quarenta anos e aparentava uma leveza sem tamanho. Catharina ficou impressionada que ele tivesse falado logo sobre isso. Teletransporte era mais recorrente na sua cabeça do que as tarefas diárias ou pensar naquele cara.

A primeira vez que pensou sobre isso, era bem pequena. Teve essa viagem na escola, e seus pais não tinham dinheiro para o transporte. Ela, que tinha ouvido sobre teletransporte em um desenho animado, pensou que essa seria uma ótima forma de ir até lá. Descobriu, não muito depois, que teletransporte não existia. Mas intimamente, acreditava que se ela desejasse muito, muito, algum dia ela teria essa chance.

 - Sim, seria ótimo. Para isso e outras coisas. - Ela respondeu para o homem, ainda olhando o ônibus perdido se afastar.
 - Você acha, que se fosse fazer um pedido, seria esse? - O homem falou. Concertou os óculos e olhou diretamente para ela.
 - Um pedido para quem? Catharina perguntou, um tanto desconfiada, um tanto palpitante. Quem espera grandes coisas da vida tende a apreciar conversas estranhas.
 - Sei lá, um gênio, ou algo assim. - Algo na forma como o homem falava, dava a entender que ele a conhecia de algum lugar. - E se for, porque?
 - Sim, queria isso. - Catharina tinha tantos motivos para desejar o teletransporte. O fato de nunca ter tido muitas oportunidades de viajar, seu amor por história e arte, a vontade de conhecer novas pessoas…. Mas não foi isso que ela respondeu. - Eu tento andar por ai como se nada estivesse acontecendo, esquecer algumas coisas, algumas pessoas, mas essa cidade.. Esse ar, esses muros… Estão impregnados de mim mesma. De memórias que eu preferia não ter. Mesmo que outras cidades se pareçam com essa, elas não terão esse cheiro forte de passado.

O homem riu de canto. Catharina achou ele parecia satisfeito com a resposta, e ao mesmo tempo surpreso com a sinceridade. Mas na verdade isso era comum dela. Ela sempre era sincera sobre si mesma e isso geralmente deixa as pessoas sem saber como responder a algo tão cru, tão despido de duplos sentidos.

- Sabe o que me fez conseguir o teletransporte? - Ele disse, como se dissesse “sabe pq eu troquei de operadora?” Catharina apenas fez um aceno de cabeça para que ele continuasse. Não queria interromper, mesmo que ele fosse um louco. Principalmente se ele fosse um louco. - Alguém que quer teletransporte, certamente quer partir. Mas não quer partir totalmente. Quer sempre poder voltar para o lugar de onde veio. Quer ficar em se equilibrando em cima desse muro. Mas as coisas não funcionam bem assim. É preciso saber a hora de ficar em alguns lugares. É preciso passar um tempo realmente longo. Quando você souber os motivos pelos quais você ficaria em algum lugar, sem voltar para casa Catharina, você conseguirá.

Ela olhou para o homem sem dizer nada. Ele fez um aceno de cabeça e começou a andar. Em meio a multidão de pessoas indo e vindo perto ao ponto de ônibus, ele sumiu. Catharina nunca tinha pensado sobre isso. Na cabeça dela, com o teletransporte ele passaria os dias de um lado para o outro conhecendo os cantinhos mais remotos do mundo.

Mas quando ele falou, simplesmente a resposta lhe veio, clara. O que a fez querer embora é o mesmo que a faria quer ficar. Pessoas. Se ela conhecesse, nesses mil e um lugares, pessoas que pedissem para ela ficar, ela ficaria.


Fechou os olhos, enebriada com a possibilidade. Uma brisa fresca e salgada passou por ela. Abriu os olhos e na sua frente não estava a BR movimentada, e sim sua praia favorita. Manteve os olhos abertos. Sonho ou não, ela não queria perder um segundo.

Pensou em escrever uma carta. Segundos depois, a ideia lhe pareceu ruim. Há beleza nas cartas, sim, mas não existe a réplica imediata necessária. Não queria deixar margem para que nada ficasse mal resolvido, já que decidira partir só depois de revisitar todas as suas pendências emocionais. Precisava de paz, então decidiu buscá-la.

Já não havia mais espaço para ela naquela cidade. Era o que pensava. Não que não houvesse espaço físico ou tivesse inimizades demais, mas sentia que só haveria espaço para ela naquele lugar se permanecesse exatamente como estava. E como estava, onde estava, não havia paz. Precisava expandir-se, (re)iluminar-se.

Marcou com ele às sete no bar onde se encontraram pela primeira vez. "Típico", pensou sem se envergonhar por sua tipicidade. No espelho, havia treinado centenas de falas e imaginado as possíveis tréplicas do rapaz. Tentou lembrar das vezes que o magoou e buscou entender sua parcela de culpa em terem ficado tanto tempo sem olhar um para a cara do outro. Mesmo depois de tanto amor.

Estava nervosa. Era como se tudo dependesse daquela noite. Pediu uma longneck e riu lembrando de como ele dizia que ela bebia demais. Não dizia recriminando-a, mas quase a exaltando, elegendo-a. Sorriu e olhou o celular. "Estou chegando", dizia a mensagem.

Mais um gole e se lembrou de como ele foi sensível quando a consolou após ter sido demitida do seu primeiro emprego. Ele a abraçou, limpou suas lágrimas e, sem dizer nada, alisou seus negros cabelos e o trançou. Não que ele soubesse fazer tranças, não que tenha ficado bonito. Mas, lembrando-se daqueles segundos em silêncio e do afeto mútuo daquele momento, os olhos se encheram de água e o coração apertou ansioso por perdoar, ansioso por perdão.

- Ei - o cumprimento do rapaz despertou Ana de seus devaneios.
- Ah, ei. Desculpa - sorriu, meio sem graça. Havia muito que não se viam.

Ele pediu uma dose de conhaque e ela riu ao perceber que alguns hábitos não haviam mudado. Nos dois.

- Bom... - tentou começar, sem conseguir olhá-lo.
- Eu - continuou - vou me mudar. Passar uns tempos longe daqui. E eu pensei muito. E eu achava que deveria...

Ele tocou a mão que segurava, rígida, a pequena garrafa esverdeada. Ao levantar o olhar, notou o sorriso franco e aberto que o enfeitava. Os olhos dela transbordaram. Os dele se encheram. Fechou-os, ela, tentando assimilar o que estava sendo dito naquele silêncio. Perdão. Perdoaram-se.

Permitiu que um largo e tranquilo sorriso estampasse seu fino rosto cheio de lágrimas. E, então, tudo estava em paz.