Divagações de um amigo de papel


Abri os olhos e já estava lá. Na casa dela. Parecia que eu conhecia tudo. O piso do quarto, a colcha da moranguinho, o furo na cortina… Tudo.  Olhei para as minhas mãos e essas sim pareciam novas. Não as conhecia. Eu queria um espelho. Queria ver meu rosto, saber como ele era. Eu sabia onde tinha um, mas eu não podia ir até lá enquanto ela estivesse dormindo. 

Ela acordou. Olhou de modo estranho para mim. Não pareceu assustada por ter uma pessoa que ela nunca viu na vida no quarto dela. Mas ela tinha cinco anos e nessa época a gente simplesmente deixa as coisas acontecerem. A gente acha que tudo é possível então tudo é. 

“Seu nome é Tayke?” Ela perguntou bem segura da resposta. Eu disse que sim. E que sabia o nome dela também. Ela disse que esses dias tinha me visto na rua. Que queria ser minha amiga. E eu pensava o mesmo. E disse isso também.  Ela perguntou se eu tinha outros amigos. Eu não tinha. Ninguém falava comigo. Era como se as outras pessoas não pudessem me ver.  Mas eu não quis contar isso pra ela. Ela não ia achar que eu era alguém legal se eu confessasse isso assim logo de cara. 

Então, eu falei que tinha, mas que eles moravam em outro país.  Ela adorou essa ideia. Falou que isso era bom, porque eu poderia ir visitar eles e teria uma casa pra ficar. Ela não sabia sobre transporte nem nada nisso. Onde ela queria ir, era sempre com os pais, no carro. Achava que era assim que funcionava. 

Eu não sabia quantos anos eu tinha, mas ela me disse. “Você tem 10 anos. Porque dez anos pode fazer tudo. Brincar na rua sozinho, ganha mesada e pode ver tv a hora que quer. Igual a Lara aqui da rua. Ela tem dez anos e a mãe dela deixa tudo.”  Eu me vi crescer. Fiquei quase o dobro do tamanho dela. Meu cabelo também cresceu e ficou bagunçado. Ela achou engraçado, riu muito. E eu também. 

Ela contou aos pais dela sobre mim. Disse que eu era muito legal e sabia todas as melhores brincadeiras e que eu ganhava mesada e que eu gostava muito de quiabo e bife de fígado e que por isso ela não comia. Para deixar pra mim. Eu achei ótimo que ela tenha dito, pois realmente adoro e não sei onde eu posso arrumar comida a não ser nessa casa. 

Um dia, ela disse para os pais dela que não queria ir na casa de uma tia por minha causa. A tia em questão dizia que ela "não era uma criança normal". Que ficava inventando histórias, pegando livros pelo canto (sendo que mal sabia ler) e que agora tinha até inventado um amigo. Um amigo! O amigo era eu. Fiquei realmente triste. Ainda não tinha contado pra ela que todas as outras pessoas não me viam, mas a tia dizer que eu não existia era um pouco demais, cara! A mãe dela fez o que pode. Fingiu ter uma dor de cabeça, disse que também não ia. Mas eu sabia, que no fundo, um dia, eu teria que dizer. 

Então eu disse. Nesse ponto, ela já tinha quase sete anos. Já sabia ler e escrever e estava adorando. Ela não tinha contado aos seus amigos da escola porque não queria que outras pessoas fossem meus amigos. Parece que ela era possessiva, mas digamos que eu sugeri isso, de leve, uma vez ou outra. Não me julguem, eu tinha que manter o segredo, ora bolas! 

Ela estava desenhando um homem com uma espada na mão e uma capa vermelha. Me disse que era o Rei Arthur. E que ele tinha sido o maior e mais justo rei que já tinha existido. Eu sorri. 

“Sabia que ele nunca foi rei, Juane?” Ela arregalou os olhos. Disse que tinha lido no livro. Que tinha visto nos filmes. "Nem tudo que está nos filmes e nos livros aconteceu. Mas você viu, não viu? Você gostou? Você falou e fez desenhos sobre? Então, mesmo que parece que não é verdade, é verdade pra você. E isso que importa". 

Ela parou de desenhar e ficou me encarando. “Acho que eu já sei a solução, Tayke!” Ela disse, como se realmente tivesse encontrado a resposta para a vida, o universo e tudo mais. Como se já soubesse, no fundo, o que eu ia dizer. Então, ela falou que sempre que ela encontrasse um jeito de melhorar as coisas, quando ela pensasse em uma pessoa que ela queria muito conhecer, um lugar muito bonito, ela ia escrever sobre. E, se muitas pessoas gostassem também, todos passariam a falar sobre isso e, de fato, a coisa passaria a existir! 

Eu não pude discordar. A ideia era perfeita. E, hoje, eu só posso estar aqui, narrando essa história porque anos depois ela escreveu um livro. Um livro onde eu sou um guerreiro, com cabelo azul e blusa do Pink Floyd. Um livro que ela não mostrou pra quase  ninguém, mas eu estou lá. 

E, por isso, eu posso, de longe, observar ela tentar resolver as coisas com letras colocadas em espaços em branco. Às vezes, é muito legal,  ler sobre castelos e teletransporte, mas às vezes é um pouco doloroso vê-a escrever, dia após dia, naquele tal de facebook: “Pra que tanto ódio, galera?”. E eu fico me perguntando, será que as palavras têm mesmo força? E se têm, será que elas  não migraram todas para o lado negro? Mas, o que importa eu achar isso?  Ninguém liga para o que digo. Eu só existo no papel.