Fealdade


Idealizou todo seu discurso. Naquele dia, completava um ano desde que vencera as eleições do condomínio e se tornara, enfim, o Síndico do Prédio. Jorge era o filho perfeito do funcionalismo público. Passou em um concurso aos 18 anos e, desde então, trabalhava diariamente na seção do protocolo do tribunal de justiça do seu estado. Entrava às 8h e saía às 17h, com uma hora de almoço. Eram 32 anos, dos quais ele muito se orgulhava, ajudando a máquina pública a funcionar perfeitamente.

Durante a reunião entre os condôminos, ele deveria fazer o balanço de suas ações, mostrando com planilhas e gráficos e alguns números como ele tinha sido não um, mas o Síndico. Primeiro, ele analisou todos os dados e pensou em só fazer uma breve fala. Quando deu por si, já estava escrevendo, palavra por palavra, do que iria dizer.

Depois de tudo escrito, ele pensou que poderia passar alguns minutos elogiando algum dos funcionários do prédio. Pra fazer uma média. Lembrou logo de Marcos. Um jovem que, há cinco anos, havia largado sua carreira para se tornar porteiro. Nunca entendeu bem o motivo. Mas, por ser o mais elogiado pelos moradores, não havia outro nome a ser citado em seu discurso.

- ... E tudo isso não seria possível, sem a graça, a cordialidade e a simpatia de sempre de nossos dedicados funcionários. Especialmente, do inoxidável porteiro Marcos. Sua dedicação é admirável. Parabenizo a você por tornar o nosso lar um ambiente cada vez mais convidativo e cheio de alegria. Deixo aqui, meu elogio à sua fealdade.

(palmas)

Jorge, apesar de ser completamente analítico - efeito colateral do funcionalismo público, talvez -, gostava de improvisar. Gostava da sensação de, sem querer, acertar e, mais, de ser muito elogiado por seus improvisos. Como se aquilo provasse, de alguma forma, que ele era bom "de natureza".

Acontece que Jorge não sabia que o tal do Marcos tinha cansado de dar aulas de português em escolas públicas e decidiu entrar para o setor privado, como porteiro de um prédio de luxo. Não foi tão difícil. Ele sempre se destacava nas entrevistas, já que ele conseguia ser, além de muito inteligente, muito bonito. Não uma beleza extravagante, mas uma beleza sofisticada, sutil, aliada a um sorriso que mudava o humor de qualquer um.

Por não saber disso é que Jorge perdeu um de seus melhores funcionários. Tinha ouvido ou lido a palavra "fealdade" em algum lugar. Era tipo de palavra que a gente não sabe, realmente, o que significa, mas imagina alguma coisa. E Jorge imaginava que era algo bom. Melhor ainda do que "bom", maravilhoso.

Já Marcos sabia bem o significado da palavra. Não só sabia, como a detestava. Certa vez, ainda professor, um de seus alunos quis fazer uma brincadeira e o testou, querendo saber o significado de "fealdade". Ele não sabia, na época, e bom... improvisou. Acontece que o aluno já havia pesquisado e o desmentiu na frente de toda turma - o que causou um surto esquizofrênico em Marcos que o fez ser demitido por justa causa.

Por isso, ele decidiu ser porteiro. Porque, imaginava, que ninguém o testaria se ele conseguisse ser cordial e gentil o tempo inteiro. Dias depois do discurso, Jorge recebeu uma carta de demissão que continha apenas:

"Fe.al.da.de
1. Qualidade de feio. = FEIEZA, .FEIURA ≠ BELEZA, FORMOSURA.

Solicito minha exclusão do quadro de funcionários imediatamente

Att,
Marcos"

O que aconteceu depois foi óbvio: Jorge nunca mais foi eleito.