Eu ia fugir...

Foto: Juane Vailllant

Um dia pensei seriamente em fugir. 

Não me lembro por quanto tempo eu pensei sobre isso. Nem se essa ideia foi concreta. Talvez, eu nunca tenha achado que iria realmente fugir. O que mais me preocupava sobre fugir, era a mala. Todos os dias de noite, eu andava pelo meu quarto, olhando as coisas, repassando mentalmente o que eu iria colocar na mala. Nas malas. Eu iria levar uma bolsa (dessas grandes que mulher usa pra trabalhar) e uma mochila de carrinho que eu tinha para viagens longas. Calculei tudo. Eu levaria 3 calças, 10 blusas, 5 vestidos, 2 casacos, algumas calcinhas e sutiãs, minha bolsa de maquiagem, um sapato de salto, uma sapatilha e iria de tênis.

Ainda sobrava um espaço considerável na mala grande. Escolhi as melhores fotos que tinha. Sempre fui apegada a fotos. A marca máxima de que alguma coisa aconteceu. É palpável. E eu precisava disso, do palpável. Mas eu tinha que fazer isso tudo sem que ninguém percebesse. Escolhi quatro livros e o resto dos que eu gostava eu "baixei" e coloquei em um pen-drive desses. Fiquei apenas com aqueles que tinham valor simbólico, além do valor palpável. 

Minhas jóias dos 15 anos, também peguei. Nunca tinha usado uma. Todos brincos pequenos e com brilhantes, coisa de princesinha. Coisa que eu nunca fui. 

Conseguiria, no máximo, uns 500 reais vendendo tudo, eu achava. Mas ainda que fossem 100 reais, eles teriam mais utilidade.

Eu também pensava muito em como dizer. Como dizer em uma carta que: Não, não está tudo bem. Não, eu não estou feliz, mamãe; não estou feliz, papai. Eu não gosto de rosa. Eu não tomo refrigerante. Faz anos que não ouço Sandy e Junior. Quando foi que vocês deixaram de me ouvir?

Dizem que pessoas têm filhos para “alegrar a casa”. Crianças alegram a casa. Mas crianças crescem. Comprem um cachorro. Também alegra a casa. E alguns não crescem. Morrem mais rápido, e você pode comprar outro cachorro. Você pode ter quatro cachorros, até enjoar. E você pode dar o cachorro. Você pode até vender o cachorro, sabia? E se seus cachorros tiverem filhotes, ao contrário dos netos, que vão acabar com a aposentadoria, você lucra. Vender os filhotes. Não é o máximo?

No café da manhã, meu irmão disse: “Acho que quero fazer intercâmbio na Suíça”. “O que tem de legal na Suíça, meu filho?”. “Ah mãe, altas paradas. Só você vendo.” Mentiroso! Não tem nada na Suíça. Deve ser só um lugar que ele arrumou, ou que está barato. Ele nem deve saber qual a capital da Suíça! Ele ia fugir também. E tinha pensado em um jeito melhor que o meu. Filho da mãe. 

“Vá para a Suíça também.” Diz uma vozinha dentro de mim. Não dá. Foi mal, consciência, mas a Suíça tá no mapa. O lugar onde eu quero ir não está. E eu nem gosto tanto assim de queijo... 

Na minha cabeça, tudo ia dar certo. Nesse meu lugar astral, eu teria um emprego que me daria condições de morar sozinha, e eu teria muitos amigos que me ajudariam, porque eu seria muito legal. Ah, eu seria tão legal! 

O bom sobre fugir é que nesse novo lugar ninguém sabe quem você é. Você pode desfazer seu Facebook e criar outro. Você pode mudar seu estilo de roupa. Pode até criar um sotaque, se quiser. Ninguém vai ficar te cobrando fidelidade. Você não precisa se forçar a ir a lugares, ouvir coisas e andar com pessoas. Fazer o que você sempre fazia. Porque ninguém sabe o que você fazia. A senhorita veio de lugar nenhum, e pode muito bem voltar, ou ir para outro lugar ainda mais fora do mapa. 

“Sofia, vamos no shopping hoje comprar umas roupas naquela loja que você adora?” “Não Vó. Eu detesto essa loja, eu gostava dela quando tinha sete anos. Eles distribuíam pirulitos e isso bastava.” É claro que eu não disse isso. Eu fui. E nem pirulito tinha.

Vi uma mala no shopping. Parecia com a minha, mas tinha mais compartimentos. Talvez eu pudesse levar meu diário, ou minhas sapatilhas velhas do balé. Mas eu não comprei, porque precisaria de todo o dinheiro para a viagem. Afinal eu ia demorar pelo menos uns dois meses até conhecer todos aqueles meus amigos legais que me dariam emprego. 

Estava decidida a dizer que tinha sido garota de programa por um ou dois anos. Mas que não quis mais. Que parei. E quando eles ficassem chocados, eu diria: “Eu fazia apenas o que todas essas meninas fazem. Mas eu cobrava. E em vez de um coração partido, os caras me davam jóias.” Isso me daria um certo respeito. Ia manter os espertinhos e os imaturos longe de mim. Afinal, eu estava fugindo deles também. Mas eles estão em todo lugar, até no “lugar nenhum”, que não estava no mapa. 

Esse lugar nenhum era uma cidade grande, mas minha casa tinha quintal. Porque eu queria ter um sofá no quintal, e umas cadeiras grandes de madeira, cobertas por um toldo improvisado, e lá eu poderia fazer um luau, ou só fumar enquanto contava piadas com meus amigos legais.

Cheguei a fazer uma carta de despedida, onde dizia que estava querendo apenas “mudar de ares”, e esse tipo de coisas sem sentido. Era uma carta grande, escrita a mão, mas com letra desenhada. Não queria dar espaço para mais de uma interpretação. Mas eu acho que o que mais me convenceu que tudo não passou de uma ideia louca na minha cabeça foi a tal carta. A carta sumiu. Simplesmente não conseguia achá-la, e me bateu um desespero. E se eu fosse comprar pão e minha mãe achasse a carta e pensasse que eu tinha mesmo isso embora?

Mas por que isso importava? 

Afinal, se eu fosse embora mesmo, ela veria a carta. E ia ser pior ainda, porque eu teria ido embora de verdade.

E me ocorreu que fugir era uma coisa muito clichê. Que todos os rebeldes sem causa fizeram isso, e nem por isso algo ficou melhor ou pior. Me ocorreu que fugir seria algo que faria mais para as pessoas do que pra mim mesma. Preferi ficar, ficar e ver o que acontecia. Eu poderia fugir para um casamento no futuro, ou para horas e horas de trabalho. Eu poderia fugir dentro de um copo de Vodca, ou para uma golada de fumaça. Mas pensar em fugir, me fez ficar.  

Se não tivesse pensado, teria fugido.