"Eu não nasci pra ser Mônica", ela dizia. Dizia sempre que podia. "Sabe a Mônica? Da música do Legião Urbana?". Não era ela. Queixava-se, inflada, imaginando ter que aguentar um "Eduardo" em sua vida. Ela se imaginava: formada, bem sucedida, independente, tudo o que sempre sonhou e, de repente, apaixonada por um rapaz, um menino, um moleque que ficava jogando futebol de botão com seu avô.

- Quero dizer, pra mim, as pessoas precisam ser um pouco parecidas em suas rotinas, em como veem a vida - franzia os olhos ao falar, o que a deixava com uma aparência tão segura de si que nenhuma de suas amigas e nenhum de seus amigos, jamais, ousou questionar.

Acontece que o que ela sabia sobre o amor era apenas teoria. Ela condicionava a sua própria imaginação. Observadora, olhava os amores de suas amigas e pensava, pensava muito, em como teria agido. O que teria dito. O que não teria dito. E assim, de reflexão em reflexão, tornou-se uma estudiosa do amor.

Era ela quem procuravam quando queriam conselhos amorosos. Tudo o que ela dizia parecia funcionar. Pesquisadora dedicada, ela conseguia ter um olhar compreensivo das situações, imaginando todas as hipóteses e apresentando-as a quem de seu conselho necessitava.

Sentia-se bem por isso. Sentia como se soubesse algo a mais do que as outras pessoas. Por acreditar que não havia nascido para ser Mônica, ela raramente se apaixonava. Quando o fazia, era por uma imagem, uma ideia de alguém que já havia passado por sua vida. Apaixonava-se pelo passado. Por que, lá, as pessoas se tornavam exatamente o que ela queria que fossem.

No presente, não. No presente, ela sempre arranjava qualquer motivo para ter certeza de que não daria certo e acabar com suas efêmeras relações o quanto antes.

Até que, de repente, sem saber como, ela se viu em uma situação irônica. Daquele tipo quando a vida quer te ensinar alguma coisa. Ela disse: "A gente é muito diferente, né?". Ele riu e disse: "Eu sei". Sorriram ambos. Acariciaram-se. E, então, ela falou: "Mas não tem problema não" e o beijou.

Pronto. Mais Mônica do que isso não tinha como ser.

"Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer Que não existe razão?"
Foto do seriado "Hindgiht"
Quando eu tinha sete anos minha tia se separou. Eu ouvi minha avó dizendo que briga de casal,  fim de casamento, era a pior coisa que podia acontecer. Todo mundo concordou. Disseram, que a gente sofre muito. Que nada faz passar. Então eu sempre estive preparada para quando isso acontecesse. O que diria, para onde iria, para quem ligaria e até o que ia beber no fatídico dia.

Eu tinha lido muitas coisas sobre fins de casamentos:  por que acontecem, o tempo médio da duração dos relacionamentos e até os melhores lugares para ir quando seu casamento terminasse. Mas tudo isso era sobre o meu casamento. Não o de outras pessoas. 

Carolina era minha prima e também uma das minhas melhores amigas. Eu digo, era. Uma bobeira, um piscar de olhos, um lapso, e nunca mais nos falamos. Alguém me disse que ela tinha ficado com um menino que eu gostava. Eu fiquei morrendo de raiva por isso, e ela por eu ter desconfiado. Duas adolescentes cheias de razão. Nós paramos de andar juntas. Cada uma para o seu canto. Nas festas de família havia cumprimento, risadas, fotos posadas.  Mas nunca tivemos a conversa. Nunca falamos sobre isso. Passamos por cima com um trator e todos os cacos daquela história ficaram enterrados por baixo dos nossos sorrisos forçados.

Eu não sabia bem o que dizer. Era para ser um chá de panela. Era uma festa fúnebre. Todos estavam reunidos ali para presenciar a morte de um sentimento e de uma época. O casamento tinha sido cancelado. O Senhor Noivo tinha agora outra noiva. Lindo não? O que você diz? O que você diz especialmente senão fala direito com a pessoa há sete anos? 

Ela disse "Comam o bolo. Bebam a cerveja. Já ta tudo pago, foda-se". Sua mãe, correndo de um lado para o outro tentando não parecer chocada com a situação dizia: "Olha a boca Carolina!"  Ela fez dedo para a mãe e virou no gargalo, quase metade de uma garrafa de vinho. Eu estava meio apreensiva. Não queria ir falar com ela. Pelo simples fato de que quando estamos mal, queremos alguém que nos faça bem por perto. Eu acho que não fazia muito bem pra ela. Foi até a mesa dos salgados, ela estava escolhendo alguns. Nossas mãos se cruzaram em certa hora. Nossos olhos logo depois fizeram o mesmo. Ela  deu uma risada fraca. Eu retribui. 

Baixei os olhos rapidamente e segui, sentando sozinha em um banco mais adiante. Carolina veio atrás. Sentou-se e passou a garrafa de vinho para mim, eu virei um pouco e devolvi para ela, que terminou de virar o resto da garrafa. Eu fiz um brinde imaginário com meu copo de cerveja. Ela acenou.

- Sabe aquele cara que a gente ficou? Há uns sete anos atrás? - Ela começou, olhando para frente, e não para mim. - Um babacão. Igual esse que acabou de me deixar. Na verdade eu te fiz um favor.

Eu sorri. Dei uma golado no meu copo e concordei com a cabeça.  Eu poderia ter alongado o assunto. Mas esse era um caco que eu não estava a fim de desenterrar. Esperei um tempo, e despretensiosamente disse:

- Sabe aquela boate que a gente ia no centro?  Vai fazer uma festa de "remember". Bora?
- Partiu. 

Um dia, eu acordei e percebi que não sabia mais escrever poemas. "Como foi isso?", você me pergunta, enquanto estou deitada no seu divã. Pergunta com um tom discreto de incredulidade. Só não foi discreto o suficiente para passar despercebido. Notei sua ironia, doutor. Gargalho durante um minuto. Você não acredita, né? Como poderia, assim, acordar um poeta sem saber poetizar? Seria o mesmo que acordar sem respirar. Nesse caso, então, sem respirar, o ser não acordaria, não é mesmo?

Acontece que não estou aqui para ouvir suas incredulidades. Você pergunta, eu respondo. Acordei sem saber mais escrever poemas. Pronto, ponto, fato. Parei em frente ao computador, com uma coisa dentro de mim, querendo transformar aquela coisa qualquer em um poema qualquer mas acontece que nada nada nada nada vinha nem uma vírgula nem uma letra. Nada.

Pensei, então, que o problema estava no método. Talvez, minha alma tivesse acordado envelhecida, retrô. Peguei um papel, olhei o horizonte de concreto que marcava a paisagem da minha janela e nada nada nada nada absolutamente nada vazio eterno vácuo deserto. Amassei cinquenta folhas em branco. Depois, fiquei com pena dos papeis. Todos em branco. Triste morrer assim, sem ser útil para sua própria finalidade.

Mas aí, pensei de novo, talvez minha alma tivesse acordado bem mais velha do que uma caneta bic cor azul. A máquina de escrever! Ah! Uma olivetti linea 88, quem sabe, talvez, fosse capaz de extrair de mim toda a poesia que me engasgava como um refluxo. E eu tossia, só de pensar no poema que não queria nascer.

Nada. Nada nada e nada nem mesmo uma sílaba se quer nem mesmo um ponto uma exclamação nada. Senti como se um gosto de fel descesse pela minha garganta e me causasse dores como as de uma gastrite bem aguda. Comecei a me contorcer e caí no chão de tanta dor. Percebi na hora: eu estava morrendo. Eu ia morrer se não fizesse nada. Era o meu fim!

De repente, a gastrite se transformou em úlcera e a dor me cegava. Sem perceber, meu rosto estava úmido. As lágrimas incessantes desciam, como se festejassem qualquer liberdade. Estúpidas, burras. Logo deixariam de ser lágrima. Logo, logo, não seriam mais nada absolutamente nada, exatamente como aquilo que tentei escrever. Nada.

Com a pouca força que restava, fui pra rua com a ideia de ir tomar um ar, me refrescar, sei lá. E as pessoas me olhavam como se eu estivesse morrendo, mas não faziam nada. Não me sugeriam uma palavra, um tema, uma forma. Ninguém falava sobre o meu poema comigo, ninguém falava sobre nada comigo. Nada nada nada.

Se eu não pensei estar enlouquecendo? Doutor, assim até me ofende. Eu estava realmente morrendo e ninguém queria ligar para a emergência! Enquanto eu estava perdendo o ar no meio da avenida paulista, tive uma ideia. Talvez, uma daquelas respostas divinas que as pessoas têm, mas morrem logo depois e ninguém fica sabendo dos mistérios do universo.

Acontece que eu sobrevivi! Sabe-se lá porque, mas deus teve pena de mim, doutor. E, naquela hora de dor profunda, pensei: preciso de uma impossibilidade. Eu não preciso morrer de verdade, como estava acontecendo, mas eu precisava imaginar que eu iria morrer. Aí sim eu teria algum motivo para escrever. Aí sim, lembrei do poeta, da impossibilidade nasceria a poesia!

Ah, mas como, senhor? Clamei. Como eu poderia, como faria? Não sou eu deus. Pedi, ajoelhada bem no meio da rua, clamei por qualquer impossibilidade, qualquer tristeza que, por amor, o bom senhor pudesse me conceder para que eu não definhasse inútil em minha própria finalidade.

Quando olhei para o lado, doutor, vinha o carro que não conseguiu parar e, por pouco, não me matou de verdade. Fiquei em coma um tempo e, depois disso, escrevi cinco livros.

Dois deles já foram vencedores daquele prêmio importante de literatura, sabe? Tenho um aqui pro senhor, doutor.
Foto: Juane Vailllant

Um dia pensei seriamente em fugir. 

Não me lembro por quanto tempo eu pensei sobre isso. Nem se essa ideia foi concreta. Talvez, eu nunca tenha achado que iria realmente fugir. O que mais me preocupava sobre fugir, era a mala. Todos os dias de noite, eu andava pelo meu quarto, olhando as coisas, repassando mentalmente o que eu iria colocar na mala. Nas malas. Eu iria levar uma bolsa (dessas grandes que mulher usa pra trabalhar) e uma mochila de carrinho que eu tinha para viagens longas. Calculei tudo. Eu levaria 3 calças, 10 blusas, 5 vestidos, 2 casacos, algumas calcinhas e sutiãs, minha bolsa de maquiagem, um sapato de salto, uma sapatilha e iria de tênis.

Ainda sobrava um espaço considerável na mala grande. Escolhi as melhores fotos que tinha. Sempre fui apegada a fotos. A marca máxima de que alguma coisa aconteceu. É palpável. E eu precisava disso, do palpável. Mas eu tinha que fazer isso tudo sem que ninguém percebesse. Escolhi quatro livros e o resto dos que eu gostava eu "baixei" e coloquei em um pen-drive desses. Fiquei apenas com aqueles que tinham valor simbólico, além do valor palpável. 

Minhas jóias dos 15 anos, também peguei. Nunca tinha usado uma. Todos brincos pequenos e com brilhantes, coisa de princesinha. Coisa que eu nunca fui. 

Conseguiria, no máximo, uns 500 reais vendendo tudo, eu achava. Mas ainda que fossem 100 reais, eles teriam mais utilidade.

Eu também pensava muito em como dizer. Como dizer em uma carta que: Não, não está tudo bem. Não, eu não estou feliz, mamãe; não estou feliz, papai. Eu não gosto de rosa. Eu não tomo refrigerante. Faz anos que não ouço Sandy e Junior. Quando foi que vocês deixaram de me ouvir?

Dizem que pessoas têm filhos para “alegrar a casa”. Crianças alegram a casa. Mas crianças crescem. Comprem um cachorro. Também alegra a casa. E alguns não crescem. Morrem mais rápido, e você pode comprar outro cachorro. Você pode ter quatro cachorros, até enjoar. E você pode dar o cachorro. Você pode até vender o cachorro, sabia? E se seus cachorros tiverem filhotes, ao contrário dos netos, que vão acabar com a aposentadoria, você lucra. Vender os filhotes. Não é o máximo?

No café da manhã, meu irmão disse: “Acho que quero fazer intercâmbio na Suíça”. “O que tem de legal na Suíça, meu filho?”. “Ah mãe, altas paradas. Só você vendo.” Mentiroso! Não tem nada na Suíça. Deve ser só um lugar que ele arrumou, ou que está barato. Ele nem deve saber qual a capital da Suíça! Ele ia fugir também. E tinha pensado em um jeito melhor que o meu. Filho da mãe. 

“Vá para a Suíça também.” Diz uma vozinha dentro de mim. Não dá. Foi mal, consciência, mas a Suíça tá no mapa. O lugar onde eu quero ir não está. E eu nem gosto tanto assim de queijo... 

Na minha cabeça, tudo ia dar certo. Nesse meu lugar astral, eu teria um emprego que me daria condições de morar sozinha, e eu teria muitos amigos que me ajudariam, porque eu seria muito legal. Ah, eu seria tão legal! 

O bom sobre fugir é que nesse novo lugar ninguém sabe quem você é. Você pode desfazer seu Facebook e criar outro. Você pode mudar seu estilo de roupa. Pode até criar um sotaque, se quiser. Ninguém vai ficar te cobrando fidelidade. Você não precisa se forçar a ir a lugares, ouvir coisas e andar com pessoas. Fazer o que você sempre fazia. Porque ninguém sabe o que você fazia. A senhorita veio de lugar nenhum, e pode muito bem voltar, ou ir para outro lugar ainda mais fora do mapa. 

“Sofia, vamos no shopping hoje comprar umas roupas naquela loja que você adora?” “Não Vó. Eu detesto essa loja, eu gostava dela quando tinha sete anos. Eles distribuíam pirulitos e isso bastava.” É claro que eu não disse isso. Eu fui. E nem pirulito tinha.

Vi uma mala no shopping. Parecia com a minha, mas tinha mais compartimentos. Talvez eu pudesse levar meu diário, ou minhas sapatilhas velhas do balé. Mas eu não comprei, porque precisaria de todo o dinheiro para a viagem. Afinal eu ia demorar pelo menos uns dois meses até conhecer todos aqueles meus amigos legais que me dariam emprego. 

Estava decidida a dizer que tinha sido garota de programa por um ou dois anos. Mas que não quis mais. Que parei. E quando eles ficassem chocados, eu diria: “Eu fazia apenas o que todas essas meninas fazem. Mas eu cobrava. E em vez de um coração partido, os caras me davam jóias.” Isso me daria um certo respeito. Ia manter os espertinhos e os imaturos longe de mim. Afinal, eu estava fugindo deles também. Mas eles estão em todo lugar, até no “lugar nenhum”, que não estava no mapa. 

Esse lugar nenhum era uma cidade grande, mas minha casa tinha quintal. Porque eu queria ter um sofá no quintal, e umas cadeiras grandes de madeira, cobertas por um toldo improvisado, e lá eu poderia fazer um luau, ou só fumar enquanto contava piadas com meus amigos legais.

Cheguei a fazer uma carta de despedida, onde dizia que estava querendo apenas “mudar de ares”, e esse tipo de coisas sem sentido. Era uma carta grande, escrita a mão, mas com letra desenhada. Não queria dar espaço para mais de uma interpretação. Mas eu acho que o que mais me convenceu que tudo não passou de uma ideia louca na minha cabeça foi a tal carta. A carta sumiu. Simplesmente não conseguia achá-la, e me bateu um desespero. E se eu fosse comprar pão e minha mãe achasse a carta e pensasse que eu tinha mesmo isso embora?

Mas por que isso importava? 

Afinal, se eu fosse embora mesmo, ela veria a carta. E ia ser pior ainda, porque eu teria ido embora de verdade.

E me ocorreu que fugir era uma coisa muito clichê. Que todos os rebeldes sem causa fizeram isso, e nem por isso algo ficou melhor ou pior. Me ocorreu que fugir seria algo que faria mais para as pessoas do que pra mim mesma. Preferi ficar, ficar e ver o que acontecia. Eu poderia fugir para um casamento no futuro, ou para horas e horas de trabalho. Eu poderia fugir dentro de um copo de Vodca, ou para uma golada de fumaça. Mas pensar em fugir, me fez ficar.  

Se não tivesse pensado, teria fugido. 

Hoje, eu acordei e vi o Sol. Quero dizer, vi a luz do Sol refletida na pia do banheiro. Nas manhãs anteriores, o dia tinha acordado tão triste quanto eu. Não tinha reparado no Sol, na sua luz, no seu calor. Fui trabalhar e, na hora do almoço, decidir ir a um restaurante que sempre vou. Arroz integral, frango, salada. Reeducação alimentar. Você teria rido da minha cara e dito que eu preferiria estar comendo batatas fritas ou miojo. Estaria certo.

Então, de repente, me veio à memória o dia em que almoçamos juntos em um restaurante. A gente foi para o andar de cima, porque o primeiro piso estava muito cheio. E eu tinha visto um pudim tão bonito que fiquei com vontade de comer. Pedi à atendente e ela disse que não podia ir lá embaixo. Não entendemos nada, mas eu insisti e ela foi. Estava uma delícia e você também quis um pedaço.

A gente conversava sobre as dificuldades e as alegrias da vida. Coisa que fazíamos o tempo inteiro. Lembrando disso, ali mesmo, meus olhos se encheram de água, enquanto eu sorria um riso saudoso. Sorria como se, de algum lugar, de alguma maneira, você estivesse me vendo lembrar daquele dia.

É difícil pensar que você não vai estar mais aqui para compartilhar comigo a menor das coisas, como um almoço num sábado ensolarado. E você sabe como eu não gosto de demonstrar fraqueza, nem quero ser um peso para as pessoas com meus problemas. Você também tinha essa mania. E parece que essa nossa mania piora tudo. A gente chora do nada e se estressa.

Mas eu preciso sorrir. Eu preciso gargalhar, eu preciso fazer piada e fazer com que as pessoas, também, sorriam. Não posso me permitir gerar negatividade e fazer com que todos se sintam mal em minha presença. Seria uma tristeza pra você.

Afinal, era você quem estava sempre a sorrir. Você me olhava e dizia: "A gente tá na merda, né amiga?". E gargalhava, sorria, sorria... Impressionante. Eu preciso sorrir, mesmo chorando. Preciso que você saiba que a alegria que você me dava estando aqui continua existindo.

Agora, pra mim, você será como o Sol. Sempre presente, me aquecendo. E, mesmo quando eu não o vir, saberei, além das nuvens, você lá estará.




 Ela estava sentada na calçada. O rímel borrado e a garrafa vazia frouxa entre as mãos. As pupilas dilatadas e os dentes serrados.
- Vai embora! Sai! Eu sei que você quer me deixar sozinha. Ela disse sacudindo os braços na minha direção.
- Não, não vou. Eu disse, calma. Não sei porque, mas eu era a única sóbria aquela noite.
- Quer sim! Você e todo mundo, todo mundo quer me deixar sozinha! ela disse, virando para o lado e cruzando os braços. Ela estava com raiva de muita coisa. E eu sei que "eu"  não era uma delas.
- Mas eu não. Eu sou sua amiga queridinha - comecei, meio brincando, meio dando esporro -, agora já era. Vai ter que aguentar alguém que não vai deixar você sozinha.
   E ela calou. Como quem escuta uma voz amarga no fundo, que joga uma coisa na cara e depois nos abandona sem esperar por uma replica. Eu disse que ia chamar um taxi, e ela concordou.  Com a cabeça, sem dizer nada.
  O taxi chegou e nós duas fomos atrás. Acompanhadas por outra amiga, que também não estava "bem", mas que tinha tido a reação de ficar imersa em seu próprio mundo. E foi ai que ela encostou a cabeça no meu ombro e chorou. Muito. Como uma criança que descobre que vai ficar longe dos pais. Como uma adulta, que pensa muito sobre a vida e se desola com a falta de conclusão e solução para as coisas.
    E eu quis dizer muito. Quis dizer que entendia a sua angustia. Que lhe perdoava por qualquer que seja a coisa errada que ela acha que fez. Que muitas vezes me sentia exatamente igual ela, mas que, minha reação era reler Harry Potter e a Pedra Filosofal pela milésima vez. Que as pessoas são diferentes, e que quando as diferenças não se batem é que as relações vão se construindo. Eu queria dizer, mas não disse. Apenas abracei de volta. Apenas chorei de volta e alisei o seu cabelo.
 
   Acho que essa foi a primeira vez que a vi chorar. Não foi a última, mas foi a que mais me marcou. E foi porque foi tão intimamente sincera. Ela, sendo assim, um pouco ela, um pouco Ana, abriu-se inteira, para quem quisesse ver, e esse uma das coisas que eu tenho mais medo. E foi naquele momento, que ela achou ser fraqueza, que eu achei mais forte.

E nesse momento, nesse exato momento, onde a  vida obriga a ser forte, eu digo que a amizade se constrói assim. Queda e salto. Riso e choro. Gota por gota. Mas eu estou aqui, caso você precise transbordar.

Texto escrito por Lia Endringer

Eu sou Alice. Tenho desde pequena essa mania de me apresentar antes de começar qualquer história. Não sei bem o porquê, confesso. Vai ver é reflexo do tradicional ensinamento materno de não se falar com estranhos. Acredito que escrever para eles também não pareceria certo aos olhos de minha mãe. Mesmo tendo o nome do personagem mais famoso de Lewis Carroll, meu pai jamais lera o livro. Meu nome é mais um dentre tantos, sem significado especial, ou no máximo remete a uma protagonista sem sal de alguma novela antiga.

Nasci e fui criada numa cidadezinha pequena, capital de um estado menor ainda. A Wonderland dos habitantes. Mesmo que sem chapeleiros malucos, coelhos falantes e rainhas de copas. Provavelmente, quem é de fora deve conhecer nosso lugar como o pedaço de terra sem nome na previsão do tempo no jornal da noite. Tudo bem que não há tantos atrativos quanto às badaladas noites nova-iorquinas ou à urbanidade de Dubai, mas é o único vilarejo que conheço que, de fato, moraria.

Tenho um irmão de sangue e pelo menos uns quinze de consideração. A princesinha criada no meio de um monte de marmanjos entrando na puberdade. Não era ruim, longe disso, apenas... diferente. Cômico, até. Lembro das vezes que minha Barbie se tornou rival do Jaspion, ou quando minhas meias calças viravam bolas de futebol improvisadas. Desse modo, cresci soltando pipa, jogando bolinha de gude e chamando a Scheila Mello de gostosa. Só para constar, eu não fazia ideia do que gostosa significava naquela época. Hoje, sabendo, concordo plenamente com meu eu criança.

Minha família não é rica. Nunca foi. E, apesar de pobres, nada me faltou. Era mimada sem ser mimada, no melhor sentido de receber mimos sem me deixar que nada me subisse à cabeça. Alimentaram-me de sonhos. E estes eu cultivo até hoje. Lembro-me de ter falado a meu pai que queria ser médica e uma semana depois ganhado um livro de bioquímica com os dizeres: "Esse é o começo". Li o livro 17 vezes e só entendi parte dele depois de já estar cursando a faculdade (não de medicina, mas isso é assunto para outra hora). E assim se seguiu quando lhe contei dos meus sonhos de ser bailarina, astronauta, patinadora, dançarina de axé, dentista, advogada, hipista, veterinária, arquiteta, pintora, marajá... Passei por tantos estágios que quando finalmente contei que era bissexual ele achou que era uma profissão. Mamãe ainda discute nas rodinhas de canastra que ganho bastante dinheiro com isso. Quem sou eu para corrigi-la, certo?

De todos os planos, jamais considerara a profissão de escritora. E vai ver por isso ela veio com tanta paixão para minha vida. Há nem tanto tempo, lembro ter dito que respirava as palavras que escrevo. Hoje, faço amor com elas. De forma tão inadvertida e despudorada que tudo se transforma em gozo e métrica. Meus textos, já velhos e cansados, são manuseados com bastante frequência e ainda me fazem delirar de diversas formas. "Oxigênio é mais importante do que sexo, Alice", dizem-me quase como represália. Eu não acho. Aliás, nada me tira da cabeça que prefiro perder o fôlego de paixão a encher meus pulmões com a calmaria do tédio. Ar jamais me falta, não me instiga procurá-lo. Ao contrário do vazio, do nada. Quando me perguntam sobre o que me leva a escrever, respondo sem protelar que é a ausência de alguma coisa. Se já não tenho mais um amor, antes eterno, será por ele que padecerei em letras. Ou lágrimas. "Literatura é escrever uma carta para o amante que já morreu" fala Chico com sabedoria.

No meu caso, amor e escrita se diluem. Homogêneos. Indissociáveis.

Este mesmo amor que me fez sair de casa. De Liv. Dos meus confortáveis sonhos herméticos. E me lancei aqui, no nada (aquele que me inspira, sabe?), também conhecido como um lugar maior do qual eu vim. Atrás do quê? Não faço ideia. Talvez de um emprego mais de verdade do que tinha antes. Vai ver, é de um modo de vida diferente do qual estou acostumada. Mas ainda, e a mais provável, é encontrar um romance que se sobreponha ao meu affair com as letras. Ou sobreviva a mais de um livro.

Lia Endringer está sempre sorrindo, ainda que, às vezes, só no olhar, padeça de tristeza. Parece uma personagem com suas tiradas e respostas sempre na ponta da língua. Talvez, seja, mesmo. A personagem de sua própria história. É amiga da Isabella e é a nossa convidada do mês.