As metáforas da minha vida


Eu me lembro bem. Eu te olhava e me enchia de sonhos, coisas a realizar. Eu e você. A gente brincava de contar paraquedistas do exército e de caçar carros vermelhos entre os que corriam apressadamente na avenida. Você desenhava tão bem que uma vez fez uma imitação daquele quadro do Dalí, dos relógios. Eu não sabia quem era Dalí, então fiquei encantada com sua originalidade. Havia um infinito de coisas que poderíamos fazer sem que eu enjoasse. A inocência é mesmo uma bênção. Às vezes.

Demorei a entender o motivo de te ver somente uma vez ao ano. E quando aconteceu, a vida começou a ter gosto de mingau queimado - daqueles que minha mãe fazia quando esquecia que tinha panela no fogo. Aliás, foi por isso que eu decidi fazer os meus próprios mingaus. E não falo metaforicamente, apesar de que daria uma ótima metáfora. Eu os fazia todos.

Tenho raras, quase nenhuma, lembranças em que recebia carinho dela e acho que foi por isso que gostei muito de você naqueles meus anos iniciais. Os poucos dias em que estávamos juntos eram sempre carinhosos. Hoje, depois muito pensar e escrever em blocos de papel, acho que o carinho dela era justamente aquele aquele mingau queimado.

Eu nunca os cobrei as falhas que se sucederam. Bem, elas não se sucederam de fato, eu é que as notei mais tarde. Foi como se o tique-taque do relógio revelasse a vida à mim da mesma maneira que o céu nublado dá lugar ao sol depois de uma noite fria. E aí, se a gente pensar na sinergia da vida, vai ver que essa ideia sempre esteve em mim e é por isso que amo os dias frios. Não sei. Tem algumas coisas que aceito não saber.

De fato, eu nunca os cobrei as falhas que se sucederam. Não assim como vocês têm feito agora, com palavras, choros, gritos e birras. Feito crianças amedrontadas com o perigo iminente da morte. Ora, mas esse perigo não foi sempre iminente? A velhice é só um indício. Também devo confessar que não a vejo assim como um perigo, sabe... Em alguns casos, é uma libertação. Mas ai de mim dizer isso perto de vocês.

De qualquer forma, talvez eu os tenha cobrado, sim. Mas se o fiz, fiz de um jeito meu, um jeito muito particular, um jeito assim, eu poderia dizer, tão metafórico que se perdeu em seus fins. Tentei de todas as formas dizer que eu estava infeliz, mas vocês não ouviram. O que mudou de lá pra cá não foi a felicidade, quem me dera!, mas saber que a infelicidade faz parte dos meus dias. Aceite-a como quem aceita uma xícara de chá, ainda que prefira um bom e velho pingado.

Eu metaforizei tudo desde lá, desde a casa de bonecas que ganhei num natal difícil no qual todos estavam bêbados e esqueceram que uma criança como eu deveria comer em algum momento. Nunca falei assim, com todas as sílabas. Sigo metaforizando. Dizem que é porque sou pisciana, mas me recuso a pensar assim, tão matematicamente. "Tinha que ser pisciana", eles responderiam.

Se eu pudesse dizer de uma outra maneira, diria que a morte é só um destino, que o caminho sempre esteve aí pra gente percorrer e, droga, lá vou eu de novo criar alegorias pra me expressar. Ah, diria que há perdão, mas que não há como voltar. Que o que se fez está feito. Pronto. Que o caminhar é o matar das horas, dos segundos, dos minutos e que a morte em si é só mais um passo.