Havia tempos que não acendia um cigarro. Pobre Ana, sempre em busca de alguma anestesia. Inacreditavelmente, fazia frio na cidade maravilhosa. Vestiu seu fino casaco e, entre uma tragada e outra, esperou o ônibus, solitária.

Evelin optou pelo batom roxo quase preto naquela noite. Já havia bebido duas longnecks enquanto se arrumava. Um short curto, uma blusa rasgada e seu allstar velho surrado. Perfeito.

Alice queria terminar de assistir a última temporada de Breaking Bad, mas Maria Helena parecia realmente triste ao telefone. Um vestido florido lhe bastou.

A protagonista da noite - e de todas as outras noites - pôs-se dentro de seu vestido mais justo. Na boca, o vermelho saltava. Os olhos delineados esperavam as lágrimas que certamente viriam após duas ou três doses de tequila. Jose Cuervo Gold, "porque eu tô merecendo" - disse a si mesma ao se observar no espelho.

- Porra, Lena. Você gosta de ser trouxa mesmo - Essa era Evelin.
- Não fala assim. Às vezes, é difícil deixar quem a gente ama. Te entendo, amiga - Essa era Alice.
- Super entendo - Essa era Ana que, após dizer, riu e virou o resto da cerveja que estava no copo.
- Ele parecia tão sincero no início. Qual é o meu problema? Eu.. - Essa era Maria Helena, já ameaçando chorar.

Ana ouvia o relato choroso de Maria Helena com uma dorzinha no fundo do peito. Estava passando pela mesma situação, mas se negava a compartilhar com as amigas. Negava-se a deixar que vissem sua frustração assim tão de perto.

Alice havia se apaixonado apenas uma vez na vida e foi correspondida por um tempo. Mas agora já não era mais e entendia um pouco Maria Helena, apesar de julgar desnecessários seus ataques exagerados de ciúmes.

Evelin achava graça de tudo. Não entendia a lógica em se envolver com um cara que obviamente é cilada e depois ficar chorando as mágoas na mesa do bar. Para ela, os homens só serviam pra lhe dar prazer e, nessa função, considerava as mulheres muito mais eficazes. Mas, apesar de tudo, tinha empatia pela dor de Lena e decidiu dar um basta nisso.

- Gente, lembra quando a Lena se jogou na frente do carro daquele ex-namorado dela? Quebrou a perna por nada, porque hoje fulano é assumidamente viado. Porra, Lena. Só faz merda - disse Eve, rindo até se engasgar. Ana riu tanto que as lágrimas desceram. Alice riu um pouco e olhou procurando a aprovação de Lena que, limpando as lágrimas, deu um leve sorriso.

- Vai se foder, sua vadia. Posso ser a louca apaixonada, mas e você que depois de acordar na cama com três pessoas desconhecidas me ligou desesperada por uma carona? Que situação - E ria de fechar os olhos.

Beberam juntas uma dose de cachaça e o resto da noite foi assim, de risada em risada, de lembrança em lembrança, de parceria, cumplicidade, compreensão, amor e amizade.

Na ressaca do dia seguinte, Lena procurou o número de ciclano, mas não achou. Evelin havia deletado todas as fotos, números, e-mails e mensagens dele. Maria Helena riu e uma lágrima de felicidade caiu bem devagar.

Izabel gritou de leve na calçada ensolarada a pedir que o ônibus abrisse a porta do meio. Abriram, subiu. Munida de seus cinco filhos pequenos e mirrados de tão fininhos; e uma de colo, negra de cabelos crespos muito loiros e esvoaçados. Izabel esticou-se numa rapidez impensada para que seus pares de braços e pernas servissem de corrimãos e escoras para os cinco pequenos mirrados no chão. Cada um deles arregalava as atenções em busca de assentos vazios para sentarem-se. Nenhum deles achou, nem a mãe. Izabel teve de pedir para acomodá-los no assento preferencial, onde conseguiu juntar num só banco suas cinco crias espertas – que agora já se deleitavam com o vento fresco da janela.

Izabel ficou de pé enquanto várias pessoas a julgavam com o olhar, de cima a baixo. Do chinelo branco encardido ao cabelo crespo alaranjado de sol. Todos. Todos olhavam. Houve até um senhor que usou do olhar gélido para reprovar a quantidade de filhos de Izabel. Ato que não surtiu efeito na imagem calejada dela que, apesar de exalar certa juventude, carregava mesmo era muita vida naquela pele áspera. Saiu de perto dos filhos para pagar a passagem, mesmo sendo vista como ‘uma dessas que pula a roleta quando convém’.

A cada solavanco as crianças riam alto. A cada freada brusca Izabel mantinha-se fixada de frente para sua prole de cinco, com a sexta agarrada em seu colo – não nos esqueçamos da sexta filha. A senhora ao lado das crianças estava visivelmente incomodada com a situação. Decidiu levantar-se então, mas não antes de resmungar baixinho alguma besteira de reprovação sobre a cena. Obviamente Izabel nem lhe deu ouvidos ou olhares. Sentou ao lado dos filhos com a pequena chorona no colo. Chorona porque queria mamar. Izabel sacou logo o peito para fora e aliviou a menina enquanto aproveitava o certo silêncio para olhar o celular.

“Nossa, que isso!”, falou a mulher a prestar atenção na cena. Uma mulher reprovando outra mulher. Essa era a cena. Os homens, dois deles, olhavam era o peito de Izabel com aquela cara de ‘essa mina tá dando mole’. Só que Izabel para ninguém dava confiança. De repente adentra no ônibus uma daquelas marionetes vestidas com a blusa de uma casa protestante de recuperação para dependentes químicos, gritando que o deus cristão salvou a vida dele; que ele agora é um homem correto e livre das drogas – apesar de não entender ter trocado o vício da cocaína pela religião, igreja, cultos…

O homem berrava soltando perdigotos. Um desses foi parar bem no rosto de Izabel, interrompendo a distração dela com o celular. Sim, Izabel reprovou aquela saliva indesejada em seu rosto. Encarou o homem e disse bem alto: Cê cuspiu em mim!. Não, o homem não pediu desculpas. Ele alegou que o deus age por ele e aquele perdigoto foi enviado para ela prestar atenção na palavra do deus. Sim, os passageiros riram todos, menos Izabel, que o chamou de porco nojento e logo recebeu uma resposta: ‘sem deus no coração a gente só padece fazendo coisas erradas e depois pagamos com um monte de filho passando fome’.

Izabel fez o homem descer com as canetas coloridas ainda não mão, escorraçado e acuado. Mesmo na calçada ele continuava a gritar que ela estava pagando pelo escárnio que faz na terra. Os filhos ficaram todos quietinhos vendo a mãe se exaltar e depois voltar para eles. Os passageiros nem sequer moveram um dedo. Aliás, moveram sim, alguns deles estavam filmando tudo com o celular para colocar na internet. A menina no colo de Izabel chorava e chorava tanto que começaram a reclamar, mas Izabel seguiu calada para seu trajeto.

O homem na calçada também seguiu. Foi para a casa jantar com Irene, a esposa, e seus dois filhos adolescentes que ainda não sabem que o pai tem mais quatro filhos largados e abandonados com as ex-mulheres pelo mundo, iguais aos perdigotos que cospe pelas ruas e geram o incomodo de cada dia. Por não saberem, eles acolhem o pai lhe descalçando os sapatos, servindo às mãos a janta e arrumando a toalha para o banho, não sem antes escutar uma leitura bíblica que prega sobre a união da família.

Magalli S. Lima é jornalista e também se atreve a prosear. É uma querida, empoderada e a nossa convidada do mês.

Carolina teve um sonho. Mas antes do sonho vamos falar da vida de Carolina.

Todo dia ela sai de casa as oito da manhã e volta oito da noite.Sua cidade não é realmente uma grande cidade, mas é grande.Ela trabalha em dois empregos e, mesmo que tenha ouvido a vida toda que arte não é trabalho, se sente exausta no final do dia. Carolina não gosta de ir para o trabalho. O problema não é exatamente no emprego, mas no trajeto. Todo santo dia passar por aquela avenida em obra às sete da manhã e ter que ouvir cantadas e desaforos mata seu animo pouco a pouco. Mesmo que tenha uma exposição nova na galeria. Mesmo que um aluno lhe diga que quer ser desenhista. Tem vezes que ela não consegue se animar. A volta não é melhor. Da descida do ônibus até girar a chave de casa ela teme não conseguir chegar a maçaneta. Carolina ama os dois empregos. Mesmo que eles lhe deixem tão cansada. Mas ela murcha algumas vezes. Quando um professor esqueci de deixar lanche para os outros. Quando os artistas não cumprimentam os porteiros na galeria. Quando dizem para seus alunos homens que arte é “coisa de bicha” e para as suas alunas que os grandes e melhores artistas são homens. Ela não vê o porquê disso. Exatamente por ser tão inteligente, ela não entende o porquê de muita coisa.

Mas Carolina vez ou outra sai da sua rotina e vai para outra cidade. Nessa cidade, as mulheres voltam todas juntas do trabalho, da festa, ou de onde for. A segurança física é mais garantida, claro, mas a emocional é que importa mais. E essa fica intacta. As pessoas dessa cidade valorizam todo tipo de trabalho. Eles sabem o quanto é difícil ter um. Ainda mais um onde você se sinta bem. As pessoas conversam. Realmente conversam. Ouvem o que o outro tem a dizer, mesmo que não concordem. Elas pensam no todo. E em si mesmas como parte do todo. Os homens respeitam as mulheres não porque poderiam ser suas irmãs, mães ou filhas.Mas por serem humanas. E as mulheres cuidam umas das outras porque entendem que assim se chega ao equilíbrio.

Voltando ao sonho: Carolina sonhou que as duas cidades fossem lugares distintos. Que ela poderia simplesmente se mudar para a segunda cidade e viver lá para sempre. Mas infelizmente não são. E ela tem que lidar com isso. O mais importante é que Carolina acordou. Tendo plena consciência, de que nenhuma transformação se faz em casa. Muito menos dormindo.