- Foda-se! - falou baixinho como se não quisesse ser ouvida. Levantou e foi até a janela acender um cigarro. Não se considerava fumante e tampouco gastava dinheiro comprando maços de cigarro, mas estava bêbada o suficiente para aceitar o desejo de fumar sem pestanejar.

Ele tinha o semblante cansado, meio triste talvez. Questionava-se mentalmente a razão de ainda aceitar todo aquele drama que, há meses, vinha se repetindo incansavelmente. No fundo, ela estava também um pouco cansada da própria loucura, mas sentia que não tinha forças para fugir do seu papel.

Ele decidiu acender um cigarro também e fumou sentado em sua cama.

- O que tá acontecendo? - ele perguntou.
- Nada. - ela.
- Nunca sei se posso seguir a minha vida, porque você sempre resolve aparecer. - ele.

Silêncio. Tragadas. Fumaças.
Começou a chuviscar.

- Evelin...
- Hm - tinha os olhos marejados. Tentava entender a si mesma. Bater à porta dele às três da manhã, bêbada. Por quê?
- Você sabe o quanto eu gosto de você, não sabe? - Foi só aí que ele notou que ela tinha os olhos cheios d'água.

Ele se levantou. Ela virou o rosto. Ele se aproximou. Ela chorava. Ele a abraçou, pelas costas, e assim permaneceram.

- Você precisa entender que eu gosto de você assim, desse seu jeito. Eu só preciso saber se você permite que eu cuide de você ou se me quer longe da sua vida. Só isso.

Ela tinha o hábito de se autoanalisar e já havia pensado nisso centenas de vezes. Era desgastante. Tinha que lutar contra esse comportamento que, por um tempo, acreditou ser natural, essa mania de se sabotar, de repelir qualquer carinho, de abafar qualquer afeto. Imaginava que fosse algum medo ou alguma coisa assim. E isso fazia com que se sentisse ainda mais estúpida. Deixar de viver por medo.

Virou-se para ele, ainda chorosa, e riu. Ele riu também. Ficaram ali, trocando olhares e fumaças, até que ela abaixou os olhos. Riu novamente porque detestava aquele cordão que ele estava usando.

- Eu queria poder ter mais certeza das coisas. Pra poder ir e me jogar sem medo. Eu sei que é sempre um risco e tal. É que.. - Fez uma pausa. Suspirou. Sentia o coração batendo, reverberando por todo o seu corpo. - É que eu sou meio louca, você sabe. Demoro pra saber o que eu quero, demoro pra ter alguma segurança em alguém. Queria que fosse simples e desculpa as merdas que eu faço. Eu só queria que você soubesse que eu também gosto muito de você.

Eles se abraçaram por um bom tempo, mas começaram a rir porque algum vizinho estava ouvindo Pablo naquela madrugada.

- Comprei vinho hoje. Quer dormir aqui? - ele.
- Quero. - ela.

Ter tempo livre é foda. Dizem que eu deveria aproveitar e voltar a escrever. Talvez eu devesse mesmo. Até tenho algumas coisas naquele caderno e uns outros rascunhos em algum lugar por aqui, mas não lembro onde. Tenho quase certeza que passei alguns para o computador, mas são tantas pastas e arquivos... Caralho! Onde essa merda foi parar? Será que aquele poema que me veio do nada numa noite dessas eu anotei neste livro? Não, nem neste e em nenhum destes aqui. Cadê os meus post its com aquelas idéias para contos? Não acho mais nada, nem o meu caderno eu sei onde está. Será que joguei tudo fora? Eu tinha certeza que estava nesta gaveta ou será que guardei no armário da sala? Melhor mesmo é começar tudo de novo. Mas, primeiro tenho que arrumar essa bagunça e tomar banho, e também dar comida para gata e escovar os pelos dela e tenho aquela louça suja e já estou morrendo de fome. Depois disso, quem sabe eu abra um vinho e volte a escrever, mas só depois, só depois.


Lívia Corbellari é jornalista cultural e também arrisca a escrever algumas crônicas. Está sempre em busca de algo que a inspire a escrever.

Beijamin nunca foi uma criança comportada. Nunca foi calmo. Não comia bem. Chorava muito. Muito. Batia nos mais velhos sem motivo. Arremessava brinquedos pela casa. Ele ouvia muitas comparações entre nós. Eu era obediente. Eu prestava atenção. Eu não bagunçava a casa. Mas apesar dele sempre ouvir que ia “morrer” quando subia em muros, pulava de lugares altos, brincava com fogo e etc, a culpa não foi dele quando um caminhão veio a 130 KM por hora em um cruzamento e atingiu nosso carro.

Meu irmão tinha dez anos e eu tinha doze. Eu só lembro de acordar do hospital e ver um bocado de gente do meu lado. Ninguém realmente me contou. Ou eu estava zonzo. De repente, eu estava num velório ao lado de um caixão pequenino, branco e fechado. Por dias, ninguém falou nada sobre. Por meses, eu diria. A casa parecia artificialmente desbotada e naturalmente silenciosa. Mas com o passar do tempo, o nome dele voltou a ser mencionado.

A primeira vez foi num jogo do botafogo. Meu tio citou que Beijamin jogava muito bem. Um talento nato. Meu pai disse que ele podia ter seguido carreira. Já estava na escolinha há dois anos. Era o sonho do meu pai ter um filho jogador profissional. Outro dia qualquer, minha avó comentou que ele estaria fazendo treze anos. E com essa idade “Obviamente já teria um monte de namoradinhas”. Lógico, ele era tão lindo, tão falante, tão engraçado.

Eu sempre tirei notas ótimas. Principalmente em matemática. Então meus pais sempre acharam que eu seria o “empresário da família” enquanto Beijamin seria o “bon vivant”. Mas eu gostava muito mesmo de matemática. Tanto que quis fazer isso: ensinar. Meu pai nem esboçou um sorriso quando eu passei no vestibular. Na minha festa de formatura, depois de um Whisky e outro, meu pai disse: “Depois de amanhã o Beijamin faria vinte e três anos. Com essa idade acho que ele já estaria jogando na Europa”.  Eu acenei. Concordei.

No dia do enterro do meu irmão, eu olhei bem para os meus pais. A expressão deles era tão devastada que eu acreditei que eles nunca mais voltariam a sorrir. Então, eu tenho certeza que perder um filho é a pior coisa que pode acontecer com alguém. Mesmo com doze anos eu entendi isso. Mas, ao mesmo tempo, existe um certo tipo de orgulho macabro. Um filho morto não mata suas expectativas. Ele não decepciona. Todas as suas qualidades estão intactas na memória dos pais. E todos os defeitos sete palmos a baixo da terra.

Na foto, via-se ao lado de sua mãe quando ainda era só um protótipo de gente. Sorriu ao lembrar das viagens repentinas, dos passeios de barco, da água de côco e do picolé de cajá que sempre pedia àquela mulher a quem chamava de mãe. Muitos anos se passaram desde o tempo da fotografia e de imediato notou como perdera boa parte de sua inocência.

Sentada no pé de uma das inúmeras árvores da cidade, segurava um livro de Virginia Woolf e a foto funcionava ali como seu marca página. Sentia saudades da mãe. Dona Beth. Uma lágrima ameaçou descer, quando lembrou da ingenuidade com que reagiu a um olho roxo, anos atrás.

Era verão, período de férias escolares. Beth havia acabado de chegar de viagem e trazia no rosto um roxo olho que saltava. Na época, tinha deixado Ana com uma babá de confiança. Ana não entendeu. Ainda não tinha maturidade para entender o que era a violência e seus motivos e suas consequências.

A mãe gentilmente lhe disse que havia sido alvo de uma bola perdida. Moleques que jogavam futebol no meio da rua, fingindo o gol com pares de chinelos velhos. Dias depois, a realidade veio e socou Ana igualmente havia feio com Beth. "Não foi uma bola, foi o meu namorado".

Agora, Ana sorria com os olhos marejados, um pouco triste e um pouco feliz por ter perdido aquela pureza.

Talvez, pensou, tenha sido ali o início de toda uma trajetória que a levou a se sentar sob uma pomposa árvore numa tarde de verão atípica, com um livro de Virginia Woolf nas mãos. Foi lá, naquele tempo, aos 8 anos de idade, que se iniciou o desejo de que mulheres fossem tão respeitadas quanto os homens. Em sua cabeça de criança, nada justificava aquele olho roxo em Beth. Não entendia. Seria uma punição? Pelo quê?

A partir daquele momento, então, passou a existir um elo inquebrável e inegociável entre Ana e sua mãe e todas as mulheres de todos os tempos, algo que ainda hoje ela não sabia explicar.

Da mesma forma que, em seu livro, Woolf reclamava de que sua mãe não investira em negócios e educação, Ana intrigava-se com a resiliência da mãe. E da mesma maneira com que a famosa escritora reconhecia as impossibilidades de suas ancestrais terem feito o que ela queria que tivessem feito, Ana sabia que enquanto Beth não soubesse a fortaleza que era, aceitaria qualquer punição que fosse por ser mulher.

Fechou o livro. Chorava feito uma criança. Pegou o celular e mandou uma mensagem pra Beth que dizia "Enquanto eu viver, você não estará sozinha".

Recompôs-se e seguiu o resto da tarde lendo Virginia Woolf, agradecida pelos esforços anteriores que a permitiram fazer exatamente o que estava fazendo naquele momento.

Cena 1. Int. Tarde. Sala de aula de artes.

Sala grande, com uma mesa comprida no centro. O ambiente é bem iluminado e colorido. Cerca de oito crianças estão sentadas em volta da mesa. Uma mulher está sentada descontraída em uma ponta. Seus pés estão apoiados na cadeira ao lado. Ela consulta o celular e ao mesmo tempo preenche uma tabela.

VALÉRIA
(10 anos, negra, cabelos castanhos e crespos, alta para a idade. Extrovertida, tagarela, respondona.)

Tia! Acabei a atividade! Posso escrever uma cartinha?

PROFESSORA
(26 anos, parda, cabelos cacheados. Distraída, animada, descolada)

Ta bom, ta bom… Todo dia vocês querem, né? (se levanta e vai até o armário, olhando seu conteúdo demoradamente). Mas também, tem um monte de papel legal aqui dentro… Olha! Caneta de três cores! (pegando caneta do armário. Depois volta, pega alguns materiais e coloca em cima da mesa)

Valéria começa a pegar os materiais antes que os outros alunos cheguem perto. Alguns outros também pegam materiais. A professora consulta o celular mais uma vez. Valéria parece concentrada na sua atividade.

PEDRO 

Ta escrevendo carta para o Vitor, é? (chega mais perto da cadeira de Valéria) Ô, tiaaaaa! A Valéria ta namorando com o Vitor!

VALÉRIA

Mentira, tia! Esse menino ta implicando. Vou enfiar esse lápis no olho dele aí eu quero ver!

PROFESSORA

Valéria, ninguém vai enfiar o lápis no olho de ninguém. E Pedro, deixa a Valéria quieta, tá? Ela tá tranquila na dela e isso não é todo dia. Vai fazer uma carta para a Fabia… Vai fazer uma cartinha, vai. (Pedro olha de lado para a professora e esboça um sorriso. A professora sorri também)

A professora olha o celular e desanimada o coloca no bolso. Os alunos entregam folhas com desenhos para ela. O sinal toca. Valéria é a última a deixar a sala. A professora pisca para Valéria quando ela sai.

Cena 2. Ext. Tarde. Pátio

A professora observa Valéria de longe. Ela está ao lado dos outros professores, mas não está acompanhando a conversa. Valéria está andando de um lado para o outro com a carta na mão. A professora balança a cabeça. Procura Vitor com os olhos pelo pátio.Valéria se aproxima de Vitor. A professora bebe um gole de café olhando a cena. Vitor pega a carta cabisbaixo e não diz nada. Se afasta. A professora olha o celular. Um professor faz uma piada sobre o lanche. Valéria sai com passos apertados e segurando o choro. A professora olha para o celular novamente. No celular tem uma mensagem enviada por ela mesma. A mensagem diz “E aí, você vai mesmo hoje?”. A mensagem anterior também era dela. Valéria vai em direção ao banheiro. A professora também queria ir.

Os alunos brincam pelo pátio. A professora percebe uma movimentação de outros meninos perto de Vitor. Eles estão rindo e tem um papel na mão de um deles. A professora anda em direção a eles. Os meninos se dispersam e o papel volta para a mão de Vitor. A professora continua atravessando o pátio e passa direto por eles.

Cena 3. Int. Tarte. Banheiro das meninas
A professora entra no banheiro apertado. Duas meninas estão se maquiando no espelho e cochichando. Uma das divisórias está fechada.

PROFESSORA

Valéria? Valéria? Você tá ai? Fala comigo, chuchu.

VALÉRIA

Sai! Eu não quero falar com ninguém!

A professora olha para as duas meninas e indica a porta com a cabeça. Dá um sorriso no final. As duas retribuem e saem do banheiro.

PROFESSORA

Eu fiz alguma coisa com você? Alguém fez?

VALÉRIA

(Abre a porta e da um abraço na professora. Tira seus braços do pescoço dela e enxuga uma lágrima. Olha para a professora. Que olha firme de volta.)

Esses meninos, tia… Esses meninos. Eles sobem no muro, andam sozinhos, pegam barata com a mão, tudo! Mas eles não olham a gente. Eles não olham direito.

PROFESSORA 

(A professora aperta o celular nas mãos e respira fundo. )

Eu queria te dizer que.... Que fica melhor quando a gente cresce, mas não fica. Essa vida não é fácil. Para as falantes e cheias de opinião como eu e você… Menos ainda. Mas nós somos muitas. E você pode mandar uma carta para uma amiga. A Lorena por exemplo. Tenho certeza que você vai receber uma linda de volta!

Valéria sorri e acena positivamente. A professora faz um carinho na cabeça dela. Valéria sai do banheiro. A professora pega o celular e digita “migs, vamos ver o filme do Tarantino?”. Pega o celular e guarda no bolso. Se olha no espelho. Ri de si mesma.

Fade Out.

É verdade que algumas pessoas têm o hábito de julgar as outras pelo signo, pelas séries que assistem ou pelas sagas literárias das quais são fãs. Acontece que com Ana a coisa era meio diferente. Julgava seus pretendentes pelos sapatos que usavam. Era só bater os olhos no que o rapaz colocara nos pés para saber.

Pegava o metrô e a mente não descansava um minuto. "Ah, esse é do tipo que beija meninas à força na balada". "Educado". "Estudante de humanas, na certa". "Ah, não! Stalker!". E assim costumava passar pedaços das suas tardes enquanto voltava do trabalho. Bastava a companhia dos fones de ouvido para se render a seu tribunal inquisitório particular.

Nesse dia, voltava um pouco mais tarde, depois de ter feito hora extra. Mesmo cansada, decidiu atender ao pedido da amiga que dizia pra ela ir à casa do fulano, porque estava "todo mundo" lá. Sempre achava que quando estava "todo mundo" em um lugar era bom que ela também estivesse.

Ao chegar, toda descabelada, logo se ajeitou ao notar um outro que lá estava. Nunca o tinha visto. Era primo de um amigo ou algo assim que ficou lá, sorrindo, enquanto ela se perdia em sua presença. Tinha uns olhos sorridentes, o rapaz. Um sorriso claro, manso, como quem diz: "por favor, não se acanhe".

"Ana!", chamou a amiga. Saiu do transe, tirou as sandálias e meio atrapalhada perguntou onde tinha alguma coisa pra beber. Encheu o copo com qualquer gaseificado que tivesse na geladeira. Não tinha sede, era só uma desculpa para observar de longe o cabelo bagunçado do rapaz que contava inúmeras histórias engraçadas da cidade onde morava. E ria. Ria de fechar os olhos.

Até que entre uma risada e outra, quando fulano contava alguma piada, ele a olhou e um sorriso tímido estampou o rosto de Ana a ponto de deixá-la levemente rosada. Começou aí o que os românticos chamam de história de amor e o que os pessimistas costumam chamar de cilada. O irônico, que Ana só notou quando todos se despediam e ele se oferecia para deixá-la em casa, era que, enquanto ela rapidamente se apaixonava, o rapaz estava descalço. E ela também.