bate o copo na mesa, faz barulho, derruba a cerveja. vai que hoje eu quero chamar atenção. a sua atenção é a minha intenção.

eu olho pra você com o olhar mais louco do universo. porque eu quero me infiltrar nos teus mares, nesse teu oceano, tão azul, tão teu. que, esta noite, eu planejo que seja minha. só minha e só meu.

você batuca na mesa para desnortear a música ao fundo e tentar quebrar as minhas palavras - que te fazem perder a graça e ganhar o brilho nos olhos - só para eu sorrir pra você. um sorriso que agora não é voltado pra mais ninguém além dos teus lábios.

sento ao seu lado e começo a questionar.

eu pergunto de você, quero conhecer a sua vida, a sua infância. se você já viajou, como conseguiu voltar e se pretende ficar. aqui, comigo.

quero saber como seus pais são, a sua origem, seus gostos, suas músicas. quero conhecer cada gesto seu. o jeito de ajeitar o cabelo, aquela sua camisa rasgada, o poeta favorito, o que te faz chorar e o que já te fez sorrir.

quero saber como te apoiar no teu choro calado, quando ninguém mais ouviu nada, eu quero ouvir tudo.

quero reconhecer teu cheiro de longe, passar pelas avenidas, esquinas e alamedas procurando um rastro teu que sobrou em mim da noite anterior.

quero que você me conte dos relacionamentos passados, das traições, dos amores, das fodas e do futuro.

quero te enxergar no escuro, sentindo somente a minha pele sob a sua pele nua.

porque assim eu vou te te(ce)ndo aos poucos, pouco a pouco dentro de mim. e vou tracejando um mapa seu na minha alma. e vou navegar pra onde você quiser ir. vou te levar pra qualquer lugar, pra bem longe daqui. onde não exista nenhum outro pronome além de nós.

engole a cerveja e digere o desejo.

eu te quero aqui, sem menos, só mais.

é pra vir agora e me querer agora, pois eu deixo tudo. hoje a noite é livre.

porque eu te quero solenemente hoje, que ainda é presente e a sobriedade passa longe da porta.

eu peço, venha logo.

e você vem.

a gente se beija num silêncio crucial entre os dois mundos: o nosso e o dos loucos.

e você vai até o fim

despertando o amor da minha língua na sua

assim

Yasmin Nariyoshi nasceu poeta e é por isso que a sua prosa é cheia de poesia. Estudou Letras - Português na Universidade Federal de São Paulo, é amiga da Isabella e é a nossa convidada do mês.

Juane Vaillant

Conheci essa garota e meu sentimento em relação a ela foi complexo. Ao mesmo tempo em que a achei incrível, ela era tão segura, tão madura e ao mesmo tempo tão descontraída, que eu não pude acreditar que ela não estivesse de certa forma atuando. Aquela ferpa incomoda chamada inveja me bateu.

Conversei com ela por horas e ela parecia a sabedoria em pessoa. Como se ela tivesse descoberto aquele pulo do gato, o segredinho atrás da porta, para chegar a um entendimento apurado das coisas. E como ela sabia sobre a arte de ser mulher! Como entendia nosso corpo, nossas emoções, nossos desejos.

Queria rir de mim mesma. Eu que tenho tantas neuras, tantos percalços, tantas coisas para lidar dentro de mim mesma.   Eu que as vezes fujo, as vezes me escondo em outras de mim, as vezes viro papel, as vezes viro tinta, tenho o mau costume de achar que as pessoas são também, camaleões. Dançando conforme uma música que você não escolheu.  Será que ela também era?

Voltei pra casa pensando nos processos dessa mulher. Em tudo que aconteceu com ela, para que um dia ela pudesse ter essa consciência. Demorou muito tempo até eu vê-la de novo. Ela tinha a mesma graça, o mesmo jeito suave de falar e a mesma certeza. E eu ali, ainda sendo eu mesma, com passos pequenos, me equilibrando.

Mas de uma outra pra outra, ela mudou.Observei que um homem tinha chegado perto de nós. Eu não conhecia direito, e o que eu sabia não era bom. Ela estava, tal como flor de plástico, como couro falso, sendo uma cópia de si mesma. Tateando o espaço e tentando ser ainda mais agradável. Não sei se ele percebeu.

Eu lembrei das muitas vezes em que eu tinha, miseravelmente tentando demonstrar afeto por alguém. Tentar fazer a pessoa entender, através da linguagem universal dos sinais corporais, o que eu queria dizer.

Meus sentimentos foram ainda mais dúbios com relação a ela. Por um lado, me entristecia vê-la perdendo um pouco seu brilho do lado de alguém. Parecia um crime. Mas, no fundo, lá no fundo, me deu uma certa esperança ver que eu tinha algo em comum com aquela fortaleza, aquele acontecimento. Um ponto fraco, mesmo que pequeno, confundindo tudo, e nos tornando humanas.

A situação era esta: uma garota pensava dentro de um pequeno quarto de um hotel três estrelas, localizado no centro de uma grande capital. Sozinha, a garota visitava a cidade pela primeira vez. Tirando os turistas, ninguém falava sua língua e, com dificuldade, conseguia entender quando o atendente perguntava se iria querer ketchup no lanche. Na situação inicial, a garota - que já havia conhecido e fotografado alguns dos mais famosos pontos da cidade com a ajuda de um guia turístico - pensava. A dúvida era se deveria sair à noite, ir a um pub, sozinha.

Estava longe de casa e de sua cidade há mais de dez dias, o que fez com que - àquela altura - um misto de saudade e ansiedade percorresse todo seu corpo. Pensou em como seria divertido sair com suas amigas naquele dia. Sentiu falta de saber como chegar aos lugares sem precisar de um mapa. Não conhecia as ruas daquela cidade à noite. Seriam perigosas? Talvez, sim. Talvez, não. E, sendo perigosas, deixaria de sair por isso? Quais os riscos? Valeria a pena?

Lembrou do que leu no dia anterior, sentada sob uma linda e enorme árvore numa das mais memoráveis praças da capital. Lia Kundera que falava sobre a vertigem, aquela tonteira que nos dá de repente ou quando estamos diante de algum abismo profundo. Vertigem. Ele dizia que a vertigem não é o medo de cair e sim o desejo de se entregar à queda - "do qual nos defendemos aterrorizados".

Quando leu essas frases, a garota logo entendeu o que o escritor tcheco dizia. Havia experimentado aquela sensação pouco antes de decidir ir viajar. E a viagem - uma espécie de fuga particular - era a própria queda. Era um tapa, um estalo que a tirou do transe e a lembrou de que, na vida, há coisas horríveis, sim; mas há também - e sempre haverá - coisas belíssimas que câmera nenhuma seria capaz de registrar.

Pensando em Kundera e em tudo o que estava fazendo para se livrar da  sensação de vertigem, considerou estúpida a sua própria dúvida e, minutos depois, estava fazendo amizade com garçons vestidos de piratas e ficando bêbada com alguns copos de cerveja. Sozinha, sim. Mas feliz em ultrapassar a vertigem, desarmar suas próprias defesas e se permitir a uma deliciosa e surpreendente queda.

Eu nasci com esse balão de gás hélio invisível, preso na minha mão por uma corda também invisível. Cada vez que eu pulava para tentar alcançar algo, chegar mais rápido, comemorar, brincar, eu subia um pouco mais. de modo que em poucos anos, ficava impossível colocar os pés no chão. 

As vezes, as pessoas estavam falando comigo e eu nem conseguia ouvir. Eu estava bem no alto e tudo me distraia. Difícil era até se curvar, para tentar olhar para as pessoas de frente. Prestar atenção. De cima, nada poderia me abalar, mas também não poderia me afetar. Meu mundo era como uma redoma de vidro onde só passava a sombra de todas as coisas. Deixando a realidade mascarada, fantasma. 

E ais que, inesperadamente, um fato, certeiro como uma flecha, afinado como agulha e paradoxalmente tão pequeno pra quem vê de fora, atinge, sem piedade, meu companheiro balão, me levando, sem nenhum tipo de amortecimento, direto para o chão. E no fundo eu sabia, que o baque tinha sido forte mas a queda era a pior parte. 

E no chão as pessoas estavam perto. Muito perto. Assustadoramente perto. E eu me perguntava o que elas diriam quando, de repente, eu me desligasse do assunto, ou sumisse por uns dias, porque minha cabeça estava nessa outra vida, a vida junto com meu balão de ar. Eu torcia para que elas pudessem me perdoar. 

Eu encontrei essa menina, quase uma criança, que me disse que eu me importava muito. Com tudo. Que eu devia deixar algumas coisas passarem. E tinha esse senhor que riu quando eu eu falei que nunca mais eu poderia voar. Ele disse que tudo estava na minha mente. O chão e o céu.E essa mulher, forte como um carvalho, que me ensinou que eu ainda tinha muito a aprender. Que embora eu achasse, devido a minha experiência fora do chão, que eu sabia demais, na verdade esse era só um começo. 

E por acaso eu encontrei alguns outros que tinham perdido seus balões. Eles ainda tinha a leveza de quem sabe voar, mas sabiam dar a valor ao fato de poder caminhar. Um desses me disse que gente como a gente não tem mistério. Apenas é. E isso é tão claro para as outras pessoas, que a empatia é imediata. Eles entendem. 

Fui absorvendo. Comendo as palavras que  chegavam a mim, e botando pra fora as que não cabiam. Até que nesse dia eu fui espreguiçar e senti. Senti aquele vento fresco e puro que eu só conseguia sentir lá de cima. Com um susto, olhei imediatamente para os meus pés. Não acreditei.  Olhei para toda a estenção do meu corpo. Eu estava grande, enorme. Mas ainda assim, meus pés estavam firmes no chão. 

Vinho. Você está segurando uma taça de vinho. De novo. Você segura uma taça de vinho sempre que está se sentindo triste. Um gole, dois, três. Quantas taças você já tomou? Algumas. Coloca um vestido, seu salto preferido, usa seu batom novo e faz uma careta para o espelho. Esquece de perguntar às amigas onde elas estão. Desiste de perguntar ao rapaz. Odeia filas, mas a enfrenta mesmo assim, enquanto fuma um ou dois cigarros.

Você se levanta quando começa a tocar a música que você diz ser sua. A música da sua vida. "We used to be closer than this", repete o refrão. Há alguns conhecidos na pista de dança, com quem você finge se importar e dança e sorri, enquanto deixa as lágrimas seguirem seu rumo. A solidão tem sido sua melhor companhia.

Do outro lado, você o vê. Alguma coisa em você doi e você decide ir para a área de fumantes. E fica lá. Fumando, chorando, rindo. Tenta fingir que se importa com quem finge que se importa com você. Responde "não é nada" e agradece aos estranhos que aliviam suas consciências te perguntando o que aconteceu. Quando você percebe que ninguém vai entender a sua dor passa a não se importar com o que vão pensar ao te verem lidando com ela.

"Foi o vinho". Alguém falou, quando você vomitou na entrada da boate. Não se lembra bem o que houve desde o último trago, mas sorri, porque ele está do outro lado da rua. Você se levanta e, ao observá-lo, pensa: "Quando alguém te ama, alguém te ama. Palavras são acessórios". Ele sorri e você também.

Você decide olhar o celular. Algumas amigas tinham te ligado e você tinha postado "a vida é uma merda" no Facebook. Seus amigos riram. Outros fingiram se importar.

Você acenou para ele e foi embora, andando.

De repente, ele chega e te abraça e diz que vai ficar tudo bem. Diz que a bateria do celular tinha acabado. Diz que te ama. Diz que vocês vão se entender, mesmo "desse jeito louco". Você chora, porque você chora sempre que se sente muito triste ou muito feliz. E diz

- Obrigada por não fingir se importar.


Eu era delegada há apenas seis meses.

Todo dia eu acordava mais cedo do que precisava. Eu tinha que pensar em tudo. Minha roupa, cabelo, jeito de andar, jeito de falar, postura. Eu não queria dar margem para nem um tipo de comentário. Nem bom nem ruim ao meu respeito. Na verdade se eu pudesse ser invisível, eu seria. Além de mim, apenas mais uma mulher policial e uma secretária. E mais de vinte homens.

Todos os dias eu pensava em desistir. Todos os dias eu pensava que advogar em uma empresa privada teria sido minha melhor escolha. A mais consciente. Mas eu não era muito. Eu sempre fui movida a paixões e impulsos. E por essas e outras eu vim parar aqui. E nessas eu conheci Carmen.

Era fim de expediente e eu estava morta de cansaço. Toda nova ocorrência que chegava, eu fechava os olhos e mentalizava minha cama. Meu copo de chá. Minha coberta com estampa de zebra. Nesse dia tinha chovido muito e muitos funcionários tinham faltado. Todos estavam fazendo de tudo um pouco, então eu fui atender esse B.O de ultima hora.

Ela sentou na minha frente e seu semblante era placido. Ela tinha um olhar duro e determinado. A maquiagem milimetricamente desenhada acentuava. Eu nunca fui o tipo que liguei para coisas de marca, mas olhando pra ela, eu sabia que aquelas roupas eram de alta costura. Eu já tinha as informações de lugar, hora, e tudo mais. Então fui direto ao ponto.

- Me conte o ocorrido senhora.

- É senhorita. Ela corrigiu, mas de forma calma.  Mas ali todo mundo era senhora e senhor. Essa norma da língua tinha caído a tempos.

-Tudo bem, senhorita.

- Pois bem. - Ela começou se ajeitando na cadeira.  - Eu estava saindo da loja, com algumas compras e tinha chamado um táxi. Era por volta das seis, nem estava tão escuro, sabe? Ele veio em direção a mim e já foi me mostrando a arma e me empurrando.  Ele vestia uma bermuda, camisa preta, boné preto também. Era da minha cor. Falava alto, crescia para cima de mim. Eu não entendi uma palavra. Apenas entreguei tudo que tinha e ele veio, sem mais e... Deu um tapa na minha bunda! Não sei o que isso tinha a ver com o assalto, ele apenas se sentiu no direito.  Pegou impulso e correu para uma rua escura.

- A agressão deixou alguma marca Senhorita?

- Deixou, claro. Como muitas outras. É a invasão, sabe? - Ele me lanço um olhar de cumplicidade que me atingiu como uma flecha. Eu apenas sorri fraco de volta. - Olha Delegada, vou te contar uma coisa. Eu me casei três vezes. Todas as vezes que sai de casa, eu sai apenas com o que tinha entrado. Nunca quis nada. Nem um brinco. Não tenho esse tipo de apego material. as coisas veem e é ótimo, mas um dia elas vão. Sempre vão. Então o que me incomoda é a invasão. Eu sou do interior. Venda Nova. Eu demorei um mês para dar as mãos ao meu primeiro namorado. Ai aparece um moço sei lá de onde, sabe? É muita audácia.  - Eu não soube o que responder na hora. Sabia exatamente o que ela queria dizer.  - Não precisa escrever isso tudo. Ela continuou, antes da minha resposta padrão. - Eu só queria contar isso para alguém que ia prestar atenção.

Eu anotei tudo. Sem tirar nem por. Ela pediu obrigada. Se levantou e caminhou até a porta. Elegante como eu jamais seria. A ideia da femme fatale me ocorreu. E me fez rir. Uma mulher fatal deve parecer uma coisa bem curiosa mesmo para os homens. Já para nós, quase todos eles são potencialmente fatais.

"Eu não gosto muito da chuva", ela falou, enquanto se secava do banho que acabara de tomar do ponto de ônibus até a porta da minha casa. Eu ri e a convidei para entrar. Peguei uma toalha para que ela se enxugasse. Achava bonito esse jeito dela. Não importava o que acontecesse, estava sempre radiante. Podia estar reclamando, brava, chateada, mas ainda assim conseguia iluminar os lugares.

Ofereci um café, mesmo sabendo que ela preferia chá. "Tem chá?", perguntou. Tinha esperanças de que um dia ela se juntasse a mim em meu vício. Camomila. Camomila era bem o jeito dela, aliás. Calma, atenciosa, agradável, sorridente. Ana era meio assim, meio Camomila, enquanto eu era pura cafeína.

Eu, café. Ela, chá.

Na mesa, tinha pão, requeijão e uns biscoitos. Ela preferiu não comer nada e se sentou em frente à janela da sala, observando as pessoas se relacionarem com a chuva. Comi um pão e  me juntei a ela.

Dei-lhe um abraço, daquele assim, meio de lado.

- Você é mesmo meio camomila. Meio completamente, quero dizer.
- Como assim? - sorriu, mas era um riso tão gracioso que me desconcertava toda vez.
- Ah, assim. Calma, atenciosa - disse após beijá-la.

Ela voltou a olhar a cidade. Não sei o que pensou sobre o que eu falei, não sei se estava irritada ou se tinha se apaixonado ainda mais por mim. Mas uma coisa era nítida: mantivera-se radiante. Notei que queria o silêncio e, nisso, combinávamos perfeitamente.

Ficamos ali, olhando o ir e vir, os encontros e a água incessante que lavava as ruas de concreto, enquanto nossas xícaras se esvaziavam. Ela quebrou o gelo reforçando o que havia dito mais cedo. "Eu, realmente, detesto chuva".

Ana preferia os dias de sol, ir a praia, ao parque, sair, encontrar pessoas sem que uma delas estivesse tentando se abrigar sob uma sacada. Eu percebia isso tudo e achava graça. Éramos opostos. Ela, tão sol. Eu, tão chuva.

- Ana, se um dia eu sumir, assim, do nada, promete não ficar com ódio de mim? - disse.
- Mas por que você diz isso, meu bem? - franziu o cenho.

"Ana, meu amor, deus sabe como meu coração te chama, mas é que você é tão camomila e eu tão café. Você é sol, mesmo quando chove. Já eu, meu bem, eu sou chuva o tempo inteiro".

Não disse isso, é claro. Só pensei e pensei uns dois dias depois, porque nunca consigo ser poético quando quero. É que, naquela hora, ela me olhava tão inocente. Como se, para ela, nada dessas pequenas coisas importassem, como se estivesse feliz só por estar ali, comigo.

Então, quando ela perguntou por que eu falava aquilo, eu disse o que deveria dizer.

- Nada não, besteira - e deixei que ela encontrasse descanso nos meus braços feito sol poente em céu nublado.


Será que era isso, mesmo? Pensou ela, vasculhando a cabeça com uma lupa tão velha, que não ajudava mais do que atrapalhava. Todavia, ela ainda tinha certa esperança e experiência no assunto. Mas nunca soube, nem demostrar, nem entender o tal, o sentimento.

Essa sensação sobre a qual ela sempre escrevia. Assim como o castelo de Hogwarts, teletransporte e viagem no tempo, esse tipo de coisa para ela sempre foi só sonho e pensamento. Nunca perto. Nunca muito certo.

Na cabeça, embaralhada, trabalhada no lado direito, ela não encontrou o que precisava. Apenas pedaços de película perdidos e misturados a rabiscos amaçados.

Como podia em meio a confusão, achar algo que salvasse? Talvez nos diários, da vida, ela tentou. Mas estava tudo meio turvo pois a fumaça, da mente, estava mais tensa do que antes. E a memória, tão boa, para certas coisas que só podiam ser usadas em mesas de bar, realmente, não existia mais.

Mas, será? Charadas nunca foram bem uma especialidade. Uns dizem ter falta de sorte, outros torcem, para que coisas boas tragam coisas boas. E ela? Ela espera.

Parece-me válido dizer que almejava ser Afrodite, e era cupido. Que queria, ao fundo, ser Capitu, mas era Casmurro. Por isso, não entendia, quando lhe parecia que alguém estava a enxergando fora do prisma comum.

E ele era caleidoscópio.

Acordei com aquela sensação de que estava caindo. Ao meu lado, estava uma mulher linda, deitada e dormindo como um anjo. Só decidi levantar porque insistiam em não entender que eu estava ocupado. Abri a porta e, à minha frente, surgiu a figura de um alguém que eu pensei que não fosse não ver mais. Os lábios rubros tinham um tom velho, gastado. A maquiagem estava aguada e não tinha chovido. Ela descalça e eu nu. 

Não quis recebê-la. Meu sangue fervia. Tive vontade de lhe dizer que estava melhor. Que voltara a escrever, escrever frases mais longas. Com menos drama, com menos dor. Dizer que tinha pintado algumas figuras na parede e não eram vermelhas. Tive vontade, aliás, de gritar. Berrar que estava muito bem sem ela, sem seu inferno astral. Que viajei pra muitos lugares e quebrei muitos corações. E que estava bem.

Mas sua aparição me fez pressentir.

***

Lendo o jornal, no mesmo lugar de sempre, pude sentir que estava em sua mira. Olhei-a. Ela me disse um turbilhão de coisas. Palavras sem sentido, sílabas soltas. Continuava lá, estática, amassando seus lábios cansados. V a g a r o a s a m e n t e.

Levantei-me, parecia sóbrio, ainda bem. Chegando a meu apartamento, ouvi seus passos. E ela entrou. Em tudo.

***

Não era preciso dizer, mas foi impossível resistir. A sua pele me atraiu como um ímã. Irrecusável.

De novo, havia vermelho nas paredes e eu estava lá. Imerso em um sonho, dentro de outro sonho. Ela me roubou as palavras, não conversava mais. Só com ela.

***

Um cinzeiro de vidro estilhaçado. Ela chorava continuamente. Negou-se a responder quando perguntei o que havia acontecido. E isso começou a se repetir todas as noites.

Duas vezes perdeu as chaves. Acabou com meus maços. Manchou os meus livros. Perdeu as canetas, esqueceu a cozinha e não fazia nada de diferente.

Parecia morta.

***

Escrevi e na primeira tentativa parei.

“O que me importa seu amor agora?
Quero minhas frases de volta. Quero ter mais o que dizer.
Cansei”

Adeus.

(Original de 2010. Amie I pode ser lido clicando aqui)