Ela me ligou


Eram 23h45, quando o telefone tocou. Era ela. Não me disse oi, nem olá. Quando atendi, ela falou: "Estava aqui pensando. Por que tem mulher que gosta de homem?". E caiu na gargalhada. Eu ri. Estava em uma farmácia 24 horas, de olho no atendente que tinha acabado de entrar no estoque para buscar minhas caixas de anticoncepcional.

Ela estava em outra cidade. Tinha decidido morar um tempo no estado vizinho, por razões pessoais. Queria se encontrar, ir atrás dos seus sonhos, essas coisas. Pra mim, a verdade é que ela se vê como personagem de um livro e, por isso, tenta se reinventar a todo momento, para deixar o leitor sempre suficientemente interessado. Uma coisa.

Seu corpo estava lá, distante, mas a mente passeava sobrevoando as ruas daqui. Talvez, em sua imaginação, ela tenha me visto atender o telefone, na rua escura, esperando impacientemente o atendente me entregar os remédios, enquanto ria do que ela me dizia.

Olhei pra trás e ele me esperava, sorridente. Enquanto isso, ela se perguntava, completamente ébria do caos e do álcool, por que é que algumas mulheres (ela não disse, mas, talvez, especialmente, as que ela se interessava) gostavam de homens. Não entendia.

Eu ri da pergunta, do telefonema àquela hora. Pensei no fato de que ela preferiu me ligar, no meio de sua confusão alcoólica, a viver aquele momento sem ouvir o que eu teria pra dizer. Ela queria me manter em sua vida a qualquer custo. E eu sorri mais ainda ao perceber isso.

Ela disse que estava bêbada e eu ri de novo, pensando "é claro, oras!". Peguei os remédios, sorri ao vendedor e respondi à pergunta dela com outra: "É por isso que você me ligou?". Rimos demais. Talvez, ela tenha lembrado de alguma história nossa. Ela disse que estava com saudades e eu disse que também.

Sempre que pergunto quando ela voltará, ela diz que não sabe, deixa no ar, como se quisesse dizer que não voltará mais. Dessa vez, ela prometeu que viria me ver no mês do meu aniversário, mas ontem mesmo falou que não ia dar. Estava sem dinheiro.