Onde cada fim é um novo começo


Texto escrito por Lia Endringer

Eu sou Alice. Tenho desde pequena essa mania de me apresentar antes de começar qualquer história. Não sei bem o porquê, confesso. Vai ver é reflexo do tradicional ensinamento materno de não se falar com estranhos. Acredito que escrever para eles também não pareceria certo aos olhos de minha mãe. Mesmo tendo o nome do personagem mais famoso de Lewis Carroll, meu pai jamais lera o livro. Meu nome é mais um dentre tantos, sem significado especial, ou no máximo remete a uma protagonista sem sal de alguma novela antiga.

Nasci e fui criada numa cidadezinha pequena, capital de um estado menor ainda. A Wonderland dos habitantes. Mesmo que sem chapeleiros malucos, coelhos falantes e rainhas de copas. Provavelmente, quem é de fora deve conhecer nosso lugar como o pedaço de terra sem nome na previsão do tempo no jornal da noite. Tudo bem que não há tantos atrativos quanto às badaladas noites nova-iorquinas ou à urbanidade de Dubai, mas é o único vilarejo que conheço que, de fato, moraria.

Tenho um irmão de sangue e pelo menos uns quinze de consideração. A princesinha criada no meio de um monte de marmanjos entrando na puberdade. Não era ruim, longe disso, apenas... diferente. Cômico, até. Lembro das vezes que minha Barbie se tornou rival do Jaspion, ou quando minhas meias calças viravam bolas de futebol improvisadas. Desse modo, cresci soltando pipa, jogando bolinha de gude e chamando a Scheila Mello de gostosa. Só para constar, eu não fazia ideia do que gostosa significava naquela época. Hoje, sabendo, concordo plenamente com meu eu criança.

Minha família não é rica. Nunca foi. E, apesar de pobres, nada me faltou. Era mimada sem ser mimada, no melhor sentido de receber mimos sem me deixar que nada me subisse à cabeça. Alimentaram-me de sonhos. E estes eu cultivo até hoje. Lembro-me de ter falado a meu pai que queria ser médica e uma semana depois ganhado um livro de bioquímica com os dizeres: "Esse é o começo". Li o livro 17 vezes e só entendi parte dele depois de já estar cursando a faculdade (não de medicina, mas isso é assunto para outra hora). E assim se seguiu quando lhe contei dos meus sonhos de ser bailarina, astronauta, patinadora, dançarina de axé, dentista, advogada, hipista, veterinária, arquiteta, pintora, marajá... Passei por tantos estágios que quando finalmente contei que era bissexual ele achou que era uma profissão. Mamãe ainda discute nas rodinhas de canastra que ganho bastante dinheiro com isso. Quem sou eu para corrigi-la, certo?

De todos os planos, jamais considerara a profissão de escritora. E vai ver por isso ela veio com tanta paixão para minha vida. Há nem tanto tempo, lembro ter dito que respirava as palavras que escrevo. Hoje, faço amor com elas. De forma tão inadvertida e despudorada que tudo se transforma em gozo e métrica. Meus textos, já velhos e cansados, são manuseados com bastante frequência e ainda me fazem delirar de diversas formas. "Oxigênio é mais importante do que sexo, Alice", dizem-me quase como represália. Eu não acho. Aliás, nada me tira da cabeça que prefiro perder o fôlego de paixão a encher meus pulmões com a calmaria do tédio. Ar jamais me falta, não me instiga procurá-lo. Ao contrário do vazio, do nada. Quando me perguntam sobre o que me leva a escrever, respondo sem protelar que é a ausência de alguma coisa. Se já não tenho mais um amor, antes eterno, será por ele que padecerei em letras. Ou lágrimas. "Literatura é escrever uma carta para o amante que já morreu" fala Chico com sabedoria.

No meu caso, amor e escrita se diluem. Homogêneos. Indissociáveis.

Este mesmo amor que me fez sair de casa. De Liv. Dos meus confortáveis sonhos herméticos. E me lancei aqui, no nada (aquele que me inspira, sabe?), também conhecido como um lugar maior do qual eu vim. Atrás do quê? Não faço ideia. Talvez de um emprego mais de verdade do que tinha antes. Vai ver, é de um modo de vida diferente do qual estou acostumada. Mas ainda, e a mais provável, é encontrar um romance que se sobreponha ao meu affair com as letras. Ou sobreviva a mais de um livro.

Lia Endringer está sempre sorrindo, ainda que, às vezes, só no olhar, padeça de tristeza. Parece uma personagem com suas tiradas e respostas sempre na ponta da língua. Talvez, seja, mesmo. A personagem de sua própria história. É amiga da Isabella e é a nossa convidada do mês.