Uma carta de amor a cada despedida


Querido,

Talvez, se eu soubesse o que dizer, eu te diria. Soubesse eu quais palavras usar e a ordem em que deveria usá-las na hora da fala, talvez, dissesse. Em alto e bom som. Não sabendo, porém, querido, escrevo-te. Perdoe-me as ênclises. Sei como você despreza tudo isso, toda essa gramática e tudo o que criamos para complicar nossas próprias vidas. Mas é que escrevendo, assim, de caneta no papel, não consigo fazer de outra maneira. Como sempre, não consigo mudar para te agradar. "Infelizmente", eu diria, caso soubesse como dizer, caso fosse verdade.

Eu me peguei olhando o nosso retrato num dia desses. Era um retrato antigo que pensei que já havia se perdido entre as nossas memórias. Aliás, perdido estava, acontece que eu o encontrei. A gente sorria um riso tão feliz que, aqui, trinta anos depois, eu ri de novo. Era bom, não era? Foi tão bom.

A gente estava viajando junto pela primeira vez. O cenário era uma praia, acho que em Itaúnas, onde a gente se conheceu. Você não deve se lembrar. Naquela época, você ainda fumava e tinha tantos outros hábitos inúteis e autodestrutivos quanto. Você jogava videogame, roía as unhas e tinha mania de nadar até o fundo do fundo do mar só para ter aquela sensação de "quase morte" e depois voltar aliviado para a superfície.

Escrevendo, assim, parece que o seu eu mais jovem era um tanto imbecil, né? Mas eu não me importava com essas coisas, porque, naquela época, você ainda me amava. E eu ainda te amava, como amei ontem ou um pouco menos. Fica complicado ter que por assim, em palavras, a intensidade do amor. Amor é amor, oras. Não era você quem sempre repetia isso?

Achei esse retrato dentro de um livro que decidi reler. "Sentimento do Mundo", do nosso amado amigo Drummond. Quando olhei a foto, eu sorri e, depois de um tempo, perguntei-me pela primeira vez, em anos: "como é possível o amor acabar?". Mas eu fiz a pergunta como se falasse com deus. Fiquei meio sem resposta e lembrei dessas músicas novas que só falam sobre como o amor é uma coisa ruim que vai levar tudo o que te alegra embora.

A partir daí, se você se lembra como eu sou, sabe que fiquei a tarde inteira divagando sobre o amor e seus significados. Sobre efemeridade, sobre fins e meios. Os inícios não me interessam muito, apesar de nunca esquecê-los. Perdão pelas ênclises, de novo.

Talvez, a resposta seja a mais óbvia. Aquela que a gente meio que se recusa a aceitar. Talvez, o amor acabe mesmo e infinito seja só aquilo que a memória consiga guardar. Talvez, eu não te ame mais. Talvez, eu me confunda pelas lembranças do amor que eu senti um dia. Ainda que o passado não exista, lembrar dele é como se ele voltasse a existir por alguns minutos.

O tempo vai e o passado logo nos obriga a reconhecer o quanto a gente mudou e o quanto somos piores ou melhores em alguma coisa. Acho que eu me agarrei no Gabriel do início. Ainda que os inícios me sejam desinteressantes, são eles que a minha memória guarda. Acho que já escrevi isso. Durante um tempo, tive dificuldades em reconhecer que você mudou e que deixou de ser exatamente aquilo que eu amava.

Já você conseguiu fazer isso mais rápido e deixou de me amar primeiro. Mas, agora, neste exato momento em que te escrevo, acho que eu entendo. Acho que te entendo. E, ainda que não entendesse, o passado não existe e é provável que você nem se lembre direito de nós dois. E da nossa infinita felicidade finita.

Notei agora que não sei, também, como escrever o que tenho para dizer. Então, preciso ser direta e explicar o motivo dessa carta. Apesar de todos os rodeios, escrevo para lhe dizer que te perdoo. E que, ainda que eu não te ame mais, seguirei sempre lembrando o nosso amor.

Até breve,
Sua Ana.

"Até que um dia sentimos,
Com uma pancada de espanto (ou de remorso?),
Que o nome querido já nos soa como os outros."
(Trecho de 'Os Nomes', de Manuel Bandeira)