Depois da tempestade vem a calmaria. Dizem. Sempre dizem. Porém esquecem de explicar a parte importante. A calmaria, já que estamos em metáforas marítimas por aqui, não é uma boa fase. É péssimo. Você fica à deriva, perdido, sem rumo. É na tempestade que tudo acontece. Todas as transformações. Boas ou ruins.

Quando eu estava no meio do turbilhão, com mil coisas me remexendo de um lado para o outro, mil caminhos que podiam dar tudo ou nada, algo me freou. Foi meu corpo. Ele reagiu de todas as formas e dores possíveis. Faltou ar. Faltou espaço, faltou garganta.

Sobrou tempo. Eu não podia produzir, não podia sair. Só a cabeça trabalhava. Trabalho. E deu um nó. Tantas escolha que eu fiz que, hoje, me parecem tão bizarramente erradas. Penso no valor que dei para algumas pessoas e no afastamento que causei em outras. Penso na minha mãe, da cozinha, me dizendo que eu me envolvia demais. Que eu me entregava demais a projetos, a amizades. Na vida.

Penso na minha irmã me dizendo que eu me complico, me atraso, me atrapalho. Que não paro muito pra pensar, só vou fazendo.
Refleti. Os dias estavam normais, enferma e sã, eu continuei andando por dentro de mim. Até que BUM! Dois socos na boca do estomago. No âmago. Não sei mais onde.

Uma morte. Simbólica, mas notória. Para me dizer que tudo nessa vida acaba. Até mesmo os laços que pensamos serem tão infinitos.

Um nascimento. Carne e osso. Para me lembrar que nada é tão ruim. Nada. Sempre tem aquela luzinha. Pequena em forma de mãozinha de bebê, que injeta um pouco de ar dentro da gente.

Eu tenho uma memória péssima. Esqueço coisas, afazeres, datas, números. Confundo nomes e ruas. Mas até que gravo bem as senhas. Apesar disso, tenho uma memória olfativa muito apurada. Sempre tive forte sensibilidade para cheiros - bons e ruins - e acho que por isso, sem querer, passei a colecioná-los. Mas, é claro, nem todos os cheiros me lembram de alguma coisa e nem todas as coisas me deixam seus cheiros. Acontece que eu não tenho poder de escolha sobre isso.

Certo dia, após uma chuva fina, senti aquele cheiro gostoso que fica, das plantas, da terra molhada. Eu, que na hora dirigia, fui transportada para a adolescência, quando eu passava as férias na Barra da Tijuca, no Rio. O lugar que eu costumava ficar era repleto de árvores, arbustos, jardins, pés de carambolas e muitas flores. Isso fazia com que o cheiro sempre ficasse assim, agradável, mesmo quando não chovia. E acho que por isso, mesmo quando não tinha ninguém para brincar comigo, estava tudo na mais perfeita paz.

Digo isso, porque preciso ponderar. Sempre. Andei dizendo que memória olfativa é uma sacanagem da vida comigo. Para ponderar, me forcei a lembrar desse episódio que, aliás, se repetiu algumas outras vezes, sempre que a chuva decidia deixar aquele cheiro incrível.

Teve esse outro dia. Que não foi ruim, mas também não foi tão bom. No ônibus, desatenta e distraída pelo filme que se passava pela janela, fui interrompida por um cheiro. De alguém, sei lá de onde surgiu. Um cheiro muito específico, de um alguém muito querido que, apesar dos dramas da juventude, me fez muito bem. Éramos divertidos juntos. Ríamos de qualquer besteira e tudo era motivo para fazer piada, dar risada. Era bom andar pela cidade juntos. Parando por aí em qualquer praça.

Não foi tão bom lembrar, porque deixou mais do que saudade, deixou aquele sentimento chato de nostalgia, quando a gente quer e não quer voltar no tempo. E, no fim, a gente decide conviver com aquelas lembranças da melhor forma possível, para que, se doer, que seja de saudade.

Até então, tudo bem. Mas, agora, preciso explicar porque amaldiçoei esse meu quase-dom da memória olfativa. Estava em um dia reflexivo. Aliás, quase todos os meus dias são reflexivos. Acontece que nesse dia eu estava mais, estava submersa nos meus pensamentos. Então, decidi assistir a um filme que já tinha visto. E que, imagino, ser a única pessoa que chora ao assisti-lo. Ou seja, eu estava bem sensível.

No meio do filme, fui encontrar, rapidamente, uma conhecida na rua, jogar papo fora, nada demais. Quando estava voltando pra casa, a pé e sozinha, senti um cheiro que - juro - não sei de onde veio. E era um perfume. Um dos bons, que me lembrava alguém. Alguém que, por um tempo, foi muito especial. Depois não foi mais.

E, em segundos, era como se eu estivesse lá, te abraçando, sentindo seu perfume. Lá, com você, sempre que você quis, sempre que você pediu e precisou. Lá, quando você fingiu que eu não era nada. Lá, quando eu desisti de nós. Lá, quando você passou, triste, sem dizer oi. Lá, quando, com saudades, você me procurou. Lá, quando eu disse não. Lá.

O barulho do portão de casa abrindo me tirou do transe em que eu me encontrava. As lágrimas queriam descer, mas eu não deixei. Voltei a assistir o filme de onde eu tinha parado e chorei mais do que das outras vezes ao ver a despedida na cena final.
foto: Juane Vaillant



Então é isso. Vou fechar os olhos.
Vou rodar, irei dançar, eu irei. E não vou me importar, por alguns segundos. E nesse meio tempo, enorme, infinito e mínimo, alguém irá aparecer. E eu vou cair. Exatamente como caí tantas vezes. E vou deixar, subir a mão, baixar a voz.
E esquecer, sim.
E vou gostar, mas por um minuto. Um ou dois, ele será você. Ou irá servir para você enxergar, por de trás do muro, por de trás da áurea que você criou. Em torno de si. De mim. E em algum momento alguém vai dizer, dizer coisas que eu quis ouvir. Mas eu não queria ouvir. Não assim.
Está claro como o Sol. Como o céu. Tentarei ser maior do que eu mais uma vez. E pensar primeiro em terceiros. E vou me culpar. Achar que outra pessoa, exatamente como eu, está pensando em quem está comigo. E certa vez alguém me disse, que amor não é amor sem pele. E que pele pode existir sem amor. Discordo. Discordo de todos. E eu vou chorar.
Por você.
Por pensar que isso, por algum motivo, te deixou mal. Amaldiçoando todas que tiveram a chance. Um mero relance. Deixaram passar. Pena. Muita pena. Pensar que por algum motivo bizarro, você pense que não é bom o bastante. E enquanto isso, continua se aproximando. Cada vez mais, do que eu chamo por ai de perfeição. E engolir em seco. E prender o choro. E embaçar o olho. Tremer os pés. Concentrar. Contar até três. Voltei. Abri os olhos. Um minuto se passou. Você ainda está lá.
Droga.

Vocês podem repetir centenas de vezes que shopping é o centro do consumo, o símbolo do capitalismo, porque é mesmo, afinal. Mas sabe a praça de alimentação? É, a praça de alimentação. Já repararam nela? Dei por mim que aquilo lá é um grandioso ponto de encontro. Entre conhecidos e, claro, desconhecidos, já que na hora do rush a gente corre pra sentar em qualquer lugar que esteja vazio.

Era segunda-feira, quase noite. Tinha saído do trabalho e, naquela fome insana de final de expediente, fui comer no japonês - como a gente costuma dizer. Sushi, sashimi, camarão, camarão e mais camarão. Nem tudo me parecia, de fato, comida oriental, mas estava surpreendentemente delicioso. E aí que no suco de laranja que levei à boca, decidi começar aquela brincadeira de adivinhar a conversa, os contextos e as intenções das outras pessoas. Só que não era a hora do rush e as mesas estavam vazias. Foi quando olhei para a varanda, da área de fumantes, e vi duas senhoras.

Uma era mais tímida e estava de costas pra mim. A outra, ria um riso bonito e escandaloso, que considerei quase vulgar. Eram amigas há tanto tempo que, quando perguntavam, elas diziam: "Ah, nos conhecemos há décadas", para tentar disfarçar a memória que já começava a falhar. Eram, mesmo, amigas - no sentido mais sincero da palavra. Já perderam as chaves juntas e viraram noites na mesa do bar. Foram chamadas de putas, histéricas, insensatas... Inconsequentes! Ora, mas por quê? Que mal há em duas moças se divertindo na noite carioca? E riam, sorriam, gargalhavam relembrando o passado que parecia não ter demorado a passar.

Acobertaram as mentiras uma da outra, falando que iam estudar, fazer o exercício daquele tal professor. Mas, na verdade, passavam o dia todo com seus namoradinhos - era assim que falavam. Quando estavam juntas, era como se o tempo não passasse. Como se fosse só aquele momento, a alegria, o desejo de estar bem, de querer o bem.

E ali, naquela praça de alimentação, daquele shopping, passaram a tarde inteira contando e recontando suas histórias, como se os 20 e poucos anos nunca tivessem sonhado em ir embora.
Saí da desconferência sobre feminismo com aquele pensamento martelando. Tantas meninas controladas por seus pais ou irmãos, tantas mulheres controladas por alguma figura masculina que se acha no direito. Não consigo engolir isso. Quando ouço falar de irmãos que querem controlar a vida amorosa e sexual das irmãs já me da um frio na espinha. E quanto a minha família, posso dizer que eu já discuti muito com meu pai. Na verdade, discuto quase todos os dias. Dois teimosos.

Vou mentir se eu disser que meu pai nunca controlou minha roupa. Uma dia eu queria comprar um short e ele achou horrível. Disse que parecia um balão e que aquelas cores juntas ficava muito brega. Meu cabelo, também. Ele queria que eu fizesse mechas azuis, e não loiras, porque loiro todo mundo tinha. E qual era a graça? Ele sempre quer saber onde eu vou. Sempre. Ele acha ridículo pagar 50 reais para entrar em uma boate sendo que tem rock de graça em algum lugar. Na hora de chegar então, nem se fala. Pra ele, é sempre melhor que eu durma na casa de alguém que mora mais perto do que voltar de madrugada. Nos meus relacionamentos, ele também tentou. Segundo ele, tem vezes que o homem é tímido, e você tem que "chegar" se não nada acontece. Quando eu resolvi fazer Rádio e Tv, ele logo avisou: "Nem sei direito o  que é isso, mas te apoio. Agora, não vai trabalhar naquela bosta de Gazeta não, hein?".

E assim nós seguimos discutindo. Sobre "Paul ou John",  filmes antigos, lugares para sair e, muitas vezes, sobre feminismo. Que ele nunca leu sobre, muitas vezes, confunde tudo e eu tenho que dar uns puxões de orelha, mas que já deu para aprender o básico.

Ele é meu pai e não meu dono. Ele não me controla, ele me ama.
E isso muda tudo.

Embrulhei o livro num pedaço de papel craft, daqueles meio amarelados. Amarrei como se fosse um pedaço de queijo e deixei lá, no pé da porta da casa dela. Não queria impressionar e precisava deixar isso bem claro logo de início. Fiquei olhando de longe, esperando que ela chegasse e desembrulhasse o livro ali mesmo. Ou, sei lá, só pegasse.
Estávamos há tanto tempo sem ser ver. Quanto anos? Não lembro. Não podia deixar que ela pensasse que eu queria amenizar os erros que cometi, a falta que sei que fiz. Se ela pensasse isso por algum segundo, não pegaria o pacote. Não abriria o livro. E ela precisava abrir aquele maldito livro. Precisava.

Acendi um cigarro e fiquei lá, do outro lado da rua, esperando. Me arrependi por alguns segundos - poucos - por não ter um daqueles celulares cheios de coisas estúpidas pra poder passar o tempo. Mas aí lembrei que eu tinha cigarro. Fumei o maço todo. Fazer o quê? São os efeitos colaterais da vida.

Estava quase anoitecendo quando ela chegou. Meu coração doeu como se fosse parar. Ela parecia cansada. Aliás, parecia morta de cansada.



Não, eu não estava só cansada. Eu estava extremamente deprimida. Não havia uma razão específica, óbvia, aparente para minha tristeza. Talvez, fosse o simples e sólido peso da existência. Sentia que piscava como se fosse dormir a qualquer momento. Enfim, estava cansada, também, de fato.

Tirando as chaves da bolsa, tropecei em um pacote. Parecia um pão caseiro embrulhado. Não lembrava de ter pedido nada. Só me restou levar o embrulho para dentro de casa e, bom, abri-lo. 

Deixei as chaves, o casaco, a bolsa e a roupa toda em cima da mesa da sala. Deitei, tentando liberar toda raiva que estava sentindo. "Relaxa, tá tudo bem", pensei enquanto me permitia chorar e expurgar todo aquele lixo emocional. Dormi um pouco.

Acordei e, por uns segundos, senti que tudo estava maravilhosamente bem, mas fui engana pela minha própria mente. Levantei e decidi preparar alguma coisa pra comer, quando lembrei do pacote.

Sentei à mesa e, com uma tesoura, cortei os nós. Era um livro. "Carlos Drummond de Andrade". "Antologia poética". Meu coração doeu como se fosse explodir. Era ele, era do Gabriel. Com toda a certeza da vida, era. Abri e li cada palavra com dezenas, e depois centenas, de lágrimas no rosto. Dizia:

Ana,
meus versos são mais tristes sem você
sou um bosta, mas seguirei te amando
sempre

Sem dúvidas, era dele.
Estava deitada ao lado dele e só conseguia pensar no meu cartão de crédito. Eu tinha que pagar a fatura, eu tinha. Odeio comprar a prazo, porque sempre me embanano. Mas vez ou outra a gente tem que comprar uma jaqueta nova ou um presente de casamento, e esse tipo de coisa abocanha o seu salário.

Fiquei ali, mentalizando a minha rota do dia seguinte. Acordar. Tomar banho. Ir à padaria. Pegar minha bicicleta no concerto. Ir ao banco. Pagar a maldita fatura. E chegar em casa antes do almoço porque minha mãe fica louca quando eu não chego. Só depois de uns dez minutos percebi que ele me acariciava.

Lembro de uma vez, na sexta série, quando o menino que eu gostava sentou na minha frente. Em certo momento, os pés dele encostaram nos meus, e esse movimento me causou choques elétricos tipo pikachu, choque do trovão. Esse tipo de coisa. Eu estava fezendo um dever de história, e eu sou apaixonada por história. Inclusive, enquanto resolvia a questão sobre transição da Idade Média para a Moderna, pensava em um roteiro onde uma estudante de história era mandada para o século XVII, para pesquisar a era dourada da pirataria. Digo isso tudo para dizer que saí desse estudo/devaneio em segundos quando o tênis do tal menino encostou no meu tênis. Um simples toque.

Também teve outra vez, mais recente, que eu estava afim de um amigo do grupo de teatro, e me enchi de calafrios porque ele me puxou pela não para eu não atravessar a rua enquanto o carro estava passando. Pensei até em fingir distração outras vezes para voltar a sentir o “pele com pele”.

Me perguntei na hora o que estava fazendo ali. Ali com aquele cara, que tentava me agradar e chamar a atenção. Acordei muito cedo no outro dia com o despertador berrando. Eu estava com raiva de mim mesma. Embora fosse isso que estivesse parecendo, não estava com raiva da fatura do cartão. Nem tão pouco do despertador.

Tinha raiva de me sentir atraída por um contado não planejado com um tênis, e pensar em cartão de crédito quando uma pessoa real está do meu lado.