Memória olfativa


Eu tenho uma memória péssima. Esqueço coisas, afazeres, datas, números. Confundo nomes e ruas. Mas até que gravo bem as senhas. Apesar disso, tenho uma memória olfativa muito apurada. Sempre tive forte sensibilidade para cheiros - bons e ruins - e acho que por isso, sem querer, passei a colecioná-los. Mas, é claro, nem todos os cheiros me lembram de alguma coisa e nem todas as coisas me deixam seus cheiros. Acontece que eu não tenho poder de escolha sobre isso.

Certo dia, após uma chuva fina, senti aquele cheiro gostoso que fica, das plantas, da terra molhada. Eu, que na hora dirigia, fui transportada para a adolescência, quando eu passava as férias na Barra da Tijuca, no Rio. O lugar que eu costumava ficar era repleto de árvores, arbustos, jardins, pés de carambolas e muitas flores. Isso fazia com que o cheiro sempre ficasse assim, agradável, mesmo quando não chovia. E acho que por isso, mesmo quando não tinha ninguém para brincar comigo, estava tudo na mais perfeita paz.

Digo isso, porque preciso ponderar. Sempre. Andei dizendo que memória olfativa é uma sacanagem da vida comigo. Para ponderar, me forcei a lembrar desse episódio que, aliás, se repetiu algumas outras vezes, sempre que a chuva decidia deixar aquele cheiro incrível.

Teve esse outro dia. Que não foi ruim, mas também não foi tão bom. No ônibus, desatenta e distraída pelo filme que se passava pela janela, fui interrompida por um cheiro. De alguém, sei lá de onde surgiu. Um cheiro muito específico, de um alguém muito querido que, apesar dos dramas da juventude, me fez muito bem. Éramos divertidos juntos. Ríamos de qualquer besteira e tudo era motivo para fazer piada, dar risada. Era bom andar pela cidade juntos. Parando por aí em qualquer praça.

Não foi tão bom lembrar, porque deixou mais do que saudade, deixou aquele sentimento chato de nostalgia, quando a gente quer e não quer voltar no tempo. E, no fim, a gente decide conviver com aquelas lembranças da melhor forma possível, para que, se doer, que seja de saudade.

Até então, tudo bem. Mas, agora, preciso explicar porque amaldiçoei esse meu quase-dom da memória olfativa. Estava em um dia reflexivo. Aliás, quase todos os meus dias são reflexivos. Acontece que nesse dia eu estava mais, estava submersa nos meus pensamentos. Então, decidi assistir a um filme que já tinha visto. E que, imagino, ser a única pessoa que chora ao assisti-lo. Ou seja, eu estava bem sensível.

No meio do filme, fui encontrar, rapidamente, uma conhecida na rua, jogar papo fora, nada demais. Quando estava voltando pra casa, a pé e sozinha, senti um cheiro que - juro - não sei de onde veio. E era um perfume. Um dos bons, que me lembrava alguém. Alguém que, por um tempo, foi muito especial. Depois não foi mais.

E, em segundos, era como se eu estivesse lá, te abraçando, sentindo seu perfume. Lá, com você, sempre que você quis, sempre que você pediu e precisou. Lá, quando você fingiu que eu não era nada. Lá, quando eu desisti de nós. Lá, quando você passou, triste, sem dizer oi. Lá, quando, com saudades, você me procurou. Lá, quando eu disse não. Lá.

O barulho do portão de casa abrindo me tirou do transe em que eu me encontrava. As lágrimas queriam descer, mas eu não deixei. Voltei a assistir o filme de onde eu tinha parado e chorei mais do que das outras vezes ao ver a despedida na cena final.